“Jornal que não trata de pluralidade, perde”
Flavia Lima, ombudsman da Folha de S.Paulo, fala sobre diversidade e desafio da posição diante da polarização do debate político
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Igor Ribeiro
22 de julho de 2019 - 9h12
Ombudsman do jornal Folha de S.Paulo desde maio, Flavia Lima tem grandes desafios no contexto atual da posição. Num momento de revisão de estruturas do processo jornalístico, a posição tem sido repensada em grandes veículos, enquanto outros reforçam o valor de uma crítica interna em tempos de intenso uso de plataformas digitais por parte do público e grande polarização de ideias no ambiente político. Esses foram alguns dos temas centrais do congresso da Organization of News Ombudsmen and Standards Editors (ONO), realizado pela Columbia Journalism Review em Nova York, no início de junho. Flavia esteve lá e trouxe seus principais insights, os quais compartilhou com o leitor em sua coluna, e analisa as diferentes percepções mundo afora sobre o papel do ombudsman hoje na entrevista a seguir.
Flavia também chega à posição num momento de revisão de práticas internas. É a sexta mulher a ser ombudsman do jornal e primeira negra, o que traz um novo olhar para a responsabilidade do jornal em tempos nos quais pautas como equidade de gênero, representatividade e apropriação cultural são crescentes. Numa troca interessante com a responsável anterior, Paula Cesarino Costa foi apontada editora de diversidade, a primeira na história da Folha. “Tratar dessa pluralidade é fundamental. Um jornal que não faz isso, perde”, diz a jornalista. Leia a seguir:
Meio & Mensagem – Qual é a importância do papel de ouvidor em diferentes instâncias, incluindo no jornalismo?
Flavia Lima – Na Folha, o ombudsman faz a ponte entre o leitor e o jornal, defendendo os interesses do leitor, especialmente. Ao mesmo tempo, não existe para criticar o jornal, mas sim para criticar o processo jornalístico, deixar o conteúdo melhor para as pessoas. No Congresso da ONO, uma das grandes preocupações foi ver que jornais americanos eliminaram a função, sendo o New York Times o exemplo mais proeminente. Isso suscita todos os questionamentos se o ombudsman está perdendo sua relevância num mundo em que as mídias digitais ganham muito valor. Então isso não seria mais necessário?
Mas, ao mesmo tempo em que alguns jornais deixaram, outros passaram a adotar, pois tiveram problemas internos, e foi importante construir essa ponte entre público e jornal. Um caso famoso é da alemã Der Spiegel, em que um repórter sênior, bastante valorizado pela revista, foi descoberto falseando diversas reportagens. Os leitores tentaram alertar a revista por meio do Twitter, e a revista não se deu conta. O caso foi crescendo até outro repórter conseguir apontar a falsidade. Óbvio que sou parte interessada, mas minha impressão é que a função não só é importante, mas é fundamental em tempos de conteúdo falso e tanta polarização, que são fatores que acabam determinado quais notícias chegam ao leitor. Independentemente, o leitor deve ser ouvido. No caso da Folha, fizemos um encontro recente com o jornal e a avaliação é que a posição deve continuar, ela tem sua importância.
Quando Augusto Nunes foi diretor de redação de O Estado de S. Paulo ele dizia que o ombudsman era o diretor de redação. Até por contraponto à Folha, que tinha acabado de criar e posição, e ele estava implantando novidades no concorrente. Mas desse modo ele também apontava que deveria ser papel do próprio jornal, de seus diretores e jornalistas, reconhecerem seus erros e criar mecanismos para encontrá-los, debatê-los e corrigi-los.
Mas é mais do que isso: é importante que essa pessoa tenha independência em relação ao jornal. É claro que alguém dentro da redação pode fazer esse papel. O New York Times não tem mais ombudsman e colocou no lugar um grupo de editores que tentam fazer essa ponte entre os leitores e o jornal, mas não são independentes. O que, acredito, pode afetar esse trabalho. Um dos princípios do ombudsman é independência, mandato fixo, durante o qual não pode ser mandado embora, e tudo isso serve para que fique à vontade para ajudar a criticar o processo de produzir notícias, o funcionamento da redação.
O Congresso da ONO reuniu profissionais de muitos países e culturas. Há diferenças entre os dilemas encontrados nas diferentes regiões?
Pelo contrário, as similaridades foram o que mais me surpreendeu. As diferenças existem, principalmente no que diz respeito ao volume de trabalho direcionado a cada ombudsman. Em alguns países não há a necessidade de uma crítica interna diária, como faço na Folha de S.Paulo. Alguns fazem colunas uma ou três vezes por semana, sendo sempre a principal responsabilidade ter contato com leitor e produzir análises com regularidade. Em outros, fazem também uma crítica diária, entre outras coisas. No Canadá, o número de ombudsmans me surpreendeu, muitos meios mantêm a posição, assim como na Argentina.
Ao mesmo tempo, as preocupações são muito parecidas, de modo geral. Há duas mais fortes hoje: como a função deve ser reportada num ambiente em que mídias digitais ganharam muito força e como atuar num cenário extremamente polarizado. Talvez essas sejam as principais preocupações dos ombudsmans em qualquer parte do mundo.
Sempre tem uma parte insatisfeita com a cobertura do poder. É importante explicar para ele como isso é feito, tenha o público razão ou não, sendo muito didático, dizendo que isso é parte do jornalismo, e que não servimos ao governo de plantão
Quais são os principais desafios da posição nesse cenário de polarização de ideias, que foi um dos temas centrais do congresso?
Acredito que essa é uma das principais preocupações atuais. É um fato: o jornalismo tem de lidar com essa grande polarização. Não acontece só aqui, mas em muitos países. E não é novo. Curiosamente, conversando com ombudsman de outras épocas ou lendo essas colunas, me deparei com início da década de 1990, com leitores questionando a forma crítica da Folha com o governo Collor, que deixariam de assinar porque o jornal perseguia o governo, não falava sobre as boas coisas que o governo vinha fazendo. Curiosamente, são muito parecidas com as reclamações de hoje em relação ao governo Bolsonaro. O que acontece é que hoje talvez por causa das mídias sociais, está muito mais claro hoje do que antes. Lá atrás o ombudsman recebia telefonemas e cartas e, hoje, também chegam e-mails e comentários. Minha última coluna, em menos de dois dias já tinha quase cem comentários de leitores contra e a favor da parceria da Folha com o The Intercept. É um bom pretexto para tentar responder a essa polarização explicando ao público como é realizado o bom jornalismo, como as decisões são tomadas na redação. Foi assim também numa coluna que fiz sobre os disparos em massa de campanhas ou fake news via WhatsApp: tento explicar ao leitor o que é jornalismo e como é importante que seja feito ainda que desagrade parte do eleitorado. No meu caso é minha única arma para lidar com a polarização. A Folha de S.Paulo tem leitores de todo espectro político, o que é ótimo e muito positivo. É um jornal imparcial e é natural que tenha esse leque. Mas sempre tem uma parte insatisfeita com a cobertura do poder. É importante explicar para ele como isso é feito, tenha o público razão ou não, sendo muito didático, dizendo que isso é parte do jornalismo, e que não servimos ao governo de plantão.
Uma das preocupações do ombudsman no jornalismo é atentar para que a área editorial e a comercial não se misturem, a famosa separação Igreja/Estado nas empresas que produzem notícia. Na publicidade tem crescido modalidades de branded content e, com ela, uma área cinzenta entre conteúdo editorial e publicitário, o que pode confundir o leitor. Como vê o aumento de projetos nesse sentido?
Acredito que é uma preocupação geral. Essa separação ainda é extremamente importante, inclusive para a Folha. Entre discussões em caso de conteúdo patrocinado, a principal é que precisa estar muito claro para o leitor do que se trata. Os jornais, revistas, como diversos meios, passam por crise financeira importante e passam a depender, cada vez mais, aqui e no mundo, de financiamento por assinatura. Há uma debandada da publicidade para outros meios, como Facebook, Google e mídias sociais, afetando profundamente jornais e revistas. Isso não significa que essa separação Igreja/Estado, como você mencionou, tenha de deixar de existir. Mais do que nunca é fundamental, se falamos de jornalismo e não de propaganda. Essa área cinzenta não deveria existir. O que eu busco apontar sempre que necessário é que o leitor precisa ter clareza sobre isso e os jornais precisam estar atentos. Num momento em que a busca por credibilidade ganha ainda mais relevância, é fundamental diferenciar conteúdos não-profissionais que se pretendem jornalismo, mas não são. Então, no jornalismo profissional essa distinção é central.
“Leitores não substituem o ombudsman”
O ombudsman da Folha é uma posição estratégica no jornal que muitas mulheres já ocuparam. Hoje se junta à pauta de equidade e diversidade, que tem se tornado importante em muitas áreas, incluindo comunicação. Como é na Folha e como vê esse debate em outras empresas do setor, de modo geral?
Representatividade e equidade são fundamentais para um jornal que se diz plural e que acompanha seu tempo. Nossa sociedade é plural também, a gente vê cada vez mais leitores mulheres, negros, de renda menor, das comunidades que anteriormente não eram tão visíveis nos meios de comunicação e hoje estão presentes e firmes. Tratar dessa pluralidade é fundamental. Um jornal que não faz isso, perde. Hoje, faço uma crítica interna todos os dias, só para a redação, e sempre pontuo alguma coisa que eu sinto que foi problemática em relação à diversidade. Acho que o jornal está atento a isso e um dos sinais é ter criado uma posição de editora de diversidade com a Paula, ombudsman antes de mim. Então tem um editor olhando só para isso, diariamente. Não quer dizer que o jornal não ocorra em problemas. Mas no meu entender é um sinal importante.
Sempre recebo e-mails, de homens e mulheres negros, me cobrando essa diversidade. Acho muito importante e uso essas sugestões nos textos, como material na crítica interna. Uma leitora me procurou na semana passada falando de uma matéria que contava a história de um homem que distribuía cartazes com ataques a ex-mulheres. Ela fez questionamentos que considerei sérios, colocando que a reportagem dedicava cinco parágrafos às justificativas do homem, apresentando quem poderia ser autor de violência como injustiçado. Receber um e-mail desse é importante para a redação pensar nas matérias que produz. Não estou dizendo que a crítica da leitora é 100% correta, mas é fundamental para que os profissionais repensem o processo jornalístico. Na próxima vez que o repórter escrever uma matéria como aquela, vai ter isso em mente e acredito que isso é relevante.
Sem demérito do diretor de redação atual, o Sérgio Dávila, cuja carreira jornalística é exemplar, a Maria Cristina Frias representaria um grande passo no sentido da pauta da diversidade, liderando o jornal, se não tivesse sido afastada, num processo que denotou certa de falta de transparência. Como analisa o ocorrido?
Não há muito o que eu possa dizer como ombudsman, pois assumi em 5 de maio e, quando a troca de comando aconteceu, eu era repórter de economia. Então, sei o que todo mundo sabe. O que posso dizer é que no caso da redação, a comunicação foi muito rápida e clara. Quem estava ali soube rapidamente que houve uma troca por decisão dos acionistas. Não me sinto à vontade para ir além disso. O processo costuma ser assim mesmo e eu achei bastante claro. A Maria Cristina teve de deixar a redação pouco depois de uma entrevista à própria ombudsman da época, o que causou certa surpresa. Foi algo rápido e, na medida do possível, bastante direto, sem nenhuma especulação, o que por um lado também é muito positivo.
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