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Inclusão em Cannes: medidas adotadas pelo festival são suficientes?

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Cannes Lions

17 a 21 de junho de 2024 | Cannes - França
Cannes

Inclusão em Cannes: medidas adotadas pelo festival são suficientes?

Mesmo com novo Programa Equidade, Representação e Acessibilidade, executivos da indústria acreditam que evento precisa ter intencionalidade para continuar promovendo inclusão dentro e fora do Palais


15 de junho de 2024 - 10h56

inclusão Cannes

Fabrício Lisboa, do Clube de Criação, e Marina Claudino, redatora da Leo Burnett, estarão em Cannes pelo Perifa Lions (Crédito: Divulgação)

Participar do Festival Internacional de Criatividade de Cannes é um privilégio. Isso porque o evento envolve muitos custos. Somente para inscrever um trabalho na premiação é preciso desembolsar entre € 650 e € 2.680, dependendo da categoria e da data em que esse case é inscrito — quanto mais tarde, maior fica esse valor.

Além disso, a credencial para comparecer ao evento varia de € 995, para estudantes, até € 10.495, preço da experiência VIP. Além, obviamente, dos custos com passagem, hospedagem e transporte até à cidade turística da Riviera Francesa. Por esse motivo, é comum que responsáveis por algumas das ideias vencedoras do festival não recebam o prêmio em mãos.

Essa conjuntura de fatores já acaba tornando o festival um ambiente excludente para muitos grupos minorizados, principalmente, pessoas pretas, da comunidade LGBTQIA+, com deficiência e de periferias.

Para tentar diminuir essa desigualdade, com o passar dos anos o Cannes Lions foi criando algumas iniciativas, como o See It Be It e o Bolsa Lions. O primeiro foi criado com o intuito de dar visibilidade a jovens criativas de todo mundo. Desde 2015, o evento seleciona grupos de mulheres que trabalham na área de criação para vivenciarem uma semana de atividades no evento.

“Nosso programa de aceleração de talentos See It Be It para mulheres ofereceu este ano a 19 criativas de mercados um lugar totalmente financiado, incluindo voos e alojamento, nesse programa único de aprendizagem e desenvolvimento, que este ano tem representação do Cazaquistão, Quénia e Tailândia pela primeira vez”, revela Frank Starling, chief diversity, equity & inclusion officer do Cannes Lions. Este ano, inclusive, uma profissional brasileira está entre as selecionadas para o programa: Mayara Ribeiro, diretora de criação associada da Galeria.

O Bolsa Lions, por sua vez, foi criado em 2023 para financiar o aprimoramento e a qualificação de profissionais que fazem parte de grupos subrepresentados na indústria da comunicação. O festival custeou, no ano passado, a participação de 130 profissionais de diferentes partes do mundo. Para este ano, o projeto oferecerá dez bolsas para talentos da indústria criativa que tenham até 30 anos. O grupo terá a viagem totalmente financiada pela organização do evento.

2022: começo das mudanças

Até 2022, o esforço do Cannes Lions para promover diversidade se limitava a alguns espaços – e o time de jurados não era um deles. Naquele ano, dos 30 brasileiros selecionados para compor o júri da premiação, apenas um era negro: o coCCO da Africa Creative Angerson Vieira, que na época respondia como diretor executivo de criação da agência.

Ao observar essa discrepância, na época, o Papel & Caneta, coletivo sem fins lucrativos fundado por André Chaves — em parceria com a Chapa Preta, que comandava o Clube de Criação, o Auê Creators, hub de impacto e inteligência cultural, e o conselho do Coletivo Publicitários Negros —, colocou no ar uma página com uma carta aberta dirigida a Simon Cook, CEO do Cannes Lions, questionando a falta de pessoas negras no time de jurados brasileiros.

“De lá para cá, o júri mudou completamente”, avalia Chaves. Depois do questionamento, naquele mesmo ano, pela primeira vez, sete pessoas negras e brasileiras foram convidadas para fazer parte do júri. Outra mudança que aconteceu naquele momento é que o processo para ser jurado se tornou mais democrático. “Eles começaram a rever todos os critérios. O movimento de 2022 abriu muitas portas para o Brasil”.

A edição de 2022 também marcou a primeira participação do Perifa Lions no festival. Criado em 2019 por Irina Didier, Letícia Rodrigues e Flávio Salcedo, o projeto levou três talentos da periferia a Cannes. Pelo terceiro ano consecutivo, a iniciativa levará jovens para acompanhar o evento. Desta vez, seis jovens acompanharão o festival. “Levar jovens para Cannes tem dupla função. Quem está aqui no Brasil está vendo que tem gente da periferia lá em Cannes. Acredita que é possível”, diz Irina.

Em 2023, o coletivo Publicitários Negros (PN), criado em 2017 com o objetivo de compartilhar informações para inspirar o dia a dia dos profissionais de publicidade, também levou jovens talentos para Cannes. Depois das críticas à falta de representatividade no ano passado, a organização do festival ofereceu passes para jovens profissionais do coletivo.

O PN retorna à Riviera Francesa agora com um time de sete pessoas negras. Presidente do conselho do coletivo, Luna Lima revela que conseguir patrocínio para levar essas pessoas para Cannes não foi fácil, porque houve fusões de agências, enquanto outras enfrentam desafios econômicos e cortaram verbas destinadas a iniciativas com este fim.

Chaves, do Papel & Caneta, sentiu que investir em inciativas que promovem diversidade e inclusão no festival não está mais entre as prioridades das agências e marcas. “Para muitos CEOs com os quais convivo, sinto que isso não é mais prioridade. Ou eles consideram que já fazem o suficiente”, afirma.

Luna alerta as empresas que investir em uma publicidade que seja plural é uma estratégia para expandir o marketing e, consequentemente, o mercado. “Porque mais pessoas se enxergarão como possíveis dentro daquela oportunidade”, diz.

O retorno do coletivo Publicitários Negros e do Perifa Lions ao festival faz parte de iniciativa Equidade, Representação e Acessibilidade (ERA), criada este ano pelo Cannes Lions para promover equidade, diversidade e inclusão. O projeto destinará cerca de € 1 milhão, a cada ano, em ingressos para profissionais que fazem parte de grupos subrepresentados. Neste ano, o festival destinou mais de € 1,5 milhão em entradas para 300 inscritos, de 52 países.

O projeto OcupaTrans também foi incluído no ERA, e levará, pela primeira vez, seis pessoas ao festival. A travesti Guilhermina de Paula idealizou o projeto no ano passado, após o assassinato de sua melhor amiga de infância, vítima de transfobia. “Dentro dos meus privilégios, dos meus acessos, quis fazer algo para poder ajudar essas pessoas a saírem da rua, a conseguirem ocupar um espaço diferente”, conta.

Starling, chefe de diversidade e inclusão do Cannes Lions, explica que a estratégia do ERA foca em três áreas, todas sustentadas pela inclusão. A primeira é a equidade: “Incorporar a equidade significa que podemos criar acesso para todas as comunidades, quebrar barreiras e abrir oportunidades globalmente para talentos subrepresentados”, diz.

A segunda é a representação, que conversa com a premissa original do evento de celebrar a criatividade de todo o mundo.“O que significa que a representação precisa estar no centro do que fazemos”, ressalta o executivo. A terceira é a acessibilidade, que, segundo ele, trata-se de um design universal, pois é algo que transforma ambientes, produtos, serviços e informações em algo utilizável e disponível a todos, independentemente de suas habilidades ou deficiências.

Apesar de todos esses programas e iniciativas, Patricia Moura, embaixadora do Publicitários Negros e fundadora e CEO da Pride Content, conta que a representatividade e diversidade ainda passa longe dos palcos do Cannes Lions. “A experiência mais chocante de Cannes é o palco, a hora que você vê a premiação. Na calçada e nas ruas, vemos pessoas pretas não somente do Brasil, mas de todos os outros países, mas, nas noites de premiação dentro do Palais, as agências chamam suas equipes para subir no palco e receber os Leões. E o que vemos são times compostos por 99% de pessoas brancas, inclusive nos países africanos e no Brasil”, afirma ela, que é jurada da categoria Entertainment pela segunda vez.

Resistência ao status quo

É essa ausência que deixa claro, enfatiza a profissional, que os trabalhos para amplificar diversidade e inclusão, sobretudo racial, ainda não acabaram. “Os espaços de poder ainda não são divididos”, salienta.

Patricia reconhece, no entanto, que o festival tem feito o seu papel de cocriação com os grupos minorizados, o que é simbólico por dar um norte para as organizações de todo o mundo. “Cada vez que o evento estiver mais engajado, mais vamos poder ter esperança de as agências se conscientizarem”.

No entanto, é importante que o mercado siga falando sobre o assunto para a pauta não esfriar — dentro e fora da Riviera Francesa — ressalta a jurada. “Tenho que ser otimista, não me resta outra alternativa. Mas, dentro desse otimismo, é necessário muita resiliência, foco, clareza de que é preciso continuar falando e provocando, porque as coisas não se resolvem sozinhas e as empresas têm uma tendência a retornar ao status quo”.

Neste sentido, Letícia, do Perifa Lions, espera que, no futuro, as marcas se engajem mais nessas causas e projetos. “Esperamos que exista um pouco mais de comprometimento da parte institucional porque a maioria das iniciativas são feitas por pessoas físicas”, aponta.

Já Irina é mais enfática: “Espero que a gente desapareça. Espero que não precisemos ter nenhum tipo de programa de diversidade, nenhum tipo de iniciativa para diversidade, para que os ambientes de fato sejam tão diversos que essa não seja uma questão”.

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