Os desafios do empreendedorismo negro na comunicação
Executivos da Wolo Tv, Trace, Gana, Brasa Mag, Maria Produtora e Oliver Press expõem as particularidades de ser um empreendedor negro na comunicação
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Carolina Huertas
19 de novembro de 2021 - 18h37
O Brasil é o País mais negro fora da África e o segundo em todo o mundo, ficando atrás apenas da Nigéria. Mesmo com 56,1% da população brasileira se autodeclarando negra, o País também é um dos mais atrasados quando se fala na conquista de direitos dessa população. O Brasil foi o último país da América a abolir a escravidão e ao tratar de medidas de reparação históricas, as poucas que existem demoraram a surgir, como a Lei de Cotas, que só foi criada em 2012.
Neste cenário, a comunicação é vista por especialistas como uma das responsáveis por ter perpetuado uma imagem negativa do grupo, reforçando estereótipos, passando uma falsa imagem da realidade do País com a falta de representatividade e, com tudo isso, apoiando um racismo estrutural. O Jornal Nacional, em seus 52 anos de existência, teve sua primeira apresentadora negra só em 2019, com Maju Coutinho. Na publicidade, um estudo realizado pelo Gema em 2020 revelou que a indústria ainda é composta por 78% de pessoas brancas.
Porém, mesmo em uma realidade de exclusão e obstáculos, os comunicadores negros brasileiros vêm lutando para conquistar o seu espaço na mídia e mudar essa história com as próprias mãos. “Nós nascemos para a reconstrução da imagem da população negra. O Brasil é um país onde, estrategicamente, para a manutenção do racismo, continua propagando uma imagem negativa”, diz Licínio Januário, co-founder da Wolo Tv, plataforma de streaming com foco na negritude.
O executivo lançou a primeira série brasileira da plataforma em dezembro de 2020, junto de Leandro Lemos. A comédia A Casa da Vó é protagonizada por Margareth Menezes e conta com participações como Rincon Sapiência. Recentemente, a empresa foi uma das selecionadas pelo Black Founders Fund, programa de aceleração do Google que busca apoiar o afroempreendedorismo no Brasil.
Além da Wolo Tv, outras iniciativas pretas vêm ganhando espaço no meio os últimos anos. Porém, Januário pontua que isso não significa que o empreendedorismo negro é algo novo. “Empreendedores pretos sempre existiram. Mulheres pretas sempre empreenderam para libertar os escravizados. Esse pensamento é uma armadilha dessa era de internet e rede sociais, onde tudo parece que está começando agora. Mas nesse País já existem mais de 14 milhões de CNPJs pretos, nós sempre empreendemos. A diferença é que as empresas estão sempre sobrevivendo, porque o sistema é feito para que a gente não exista, não se movimente”, diz.
O executivo comenta que indo contra a essa tendência de apagamento, a Wolo Tv nasceu com o objetivo de subverter a comunicação brasileira, promover autonomia criativa e empresarial de pessoas pretas e potencializar a diversidade na sua instância maior com empresas pretas como case de sucesso, movimentando milhões e empregando o povo.
Também nesse caminho, a Trace , plataforma cultura afrourbana, presente em 20 países e com retransmissão para mais de 160, chegou no Brasil em 2019, após tentar entrar no País por mais de 14 anos, sem sucesso. A marca começou a ter presença na região com o programa Trace Trends, na Rede TV, e em 2020 migrou para a Globo, atuando no Multishow, Globoplay e no conteúdo em podcast da emissora.
“Nós mostramos de forma legítima a cultura afrourbana brasileira, que por muitos anos foi mostrada na TV de forma caricata, histórias que nunca nos representavam. Agora, nós estamos podendo contra a nossa história em primeira pessoa, não só na frente das câmeras, mas por trás também. Toda a diretoria da Trace são pessoas negras, isso conta e é muito importante”, conta Kenya Sade, chefe de programação do Trace Brazuca.
Desafios da entrada
Apesar do mercado dar indícios de uma abertura de portas para os empreendedores negros, na comunicação e fora dela, o caminho ainda é longo. Ad Junior, head de marketing da Trace, conta que inicialmente o maior obstáculo era convencer as marcas do porquê de um canal de cultura afrourbana, mas depois da pandemia várias entenderam a questão e demonstraram interesse de apostar na ideia. Ainda assim, diz, muitas ainda acreditam que esse é um interesse momentâneo.
“Muitas empresas ainda não entenderam que essa não é uma pauta sazonal, é uma pauta que veio para ficar. A maior dificuldade ainda é de as pessoas entenderem que isso é um nicho. Nós estamos aqui para fazer um apontamento para as próximas gerações. Nós vemos que esse é um projeto que está transformando vidas e que tem não só o objetivo de ser um projeto que está falando da questão social, mas de ter pessoas pretas contando as suas histórias para todo mundo. É sobre abrir as oportunidades para que todos conheçam de fato o que é a cultura preta”, revela.
A barreira financeira também se mostra um dos obstáculos principais na tentativa de levar diversidade para os meios midiáticos. Enquanto a Trace tentou por mais de 14 anos ingressar na comunicação brasileira, mesmo já sendo um ecossistema televisivo ativo em outras regiões do mundo, a Wolo Tv acredita que o investimento nessa mudança virá do exterior. A Wolo TV, inclusive, tem sede nos Estados Unidos.
“O dinheiro circula em sua maioria nas mãos de brancos, captar recurso é uma grande dificuldade. Posso até dizer que é uma das partes mais complexas, porque mercado audiovisual é caro, envolve muito investimento desde a parte da criação do roteiro até o pós-produção. Por isso, precisamos cada vez mais de empresas cientes desse grande mercado e demanda reprimida para patrocinarem filmes, séries de TV, programas de variedades que não só envolvam roteiros que tragam representatividade, mas que envolvam pessoas negras como um todo, inclusive nos cargos de liderança da produção e direção”, comenta a CEO da Maria Produtora, Maria Gal.
A atriz decidiu enfrentar o audiovisual pois se incomodava com a falta de representatividade na frente e por trás das câmeras. Em 2017, ao participar de um teste de elenco, perdeu o papel para uma atriz branca porque segundo o diretor, seu tom de pele era “menos comercial”. Do sentimento de raiva e dor, ela decidiu criar sua própria produtora que hoje tem como objetivo de investir na equidade racial do mercado audiovisual.
Penetrar o mercado da comunicação e se manter dentro dele de forma crescente tem sido um dos principais desafios não apenas para os comunicadores do audiovisual. Julia Reis, CEO da Brasa Mag, também aponta a questão. A revista digital surgiu do propósito de retomar as narrativas dentro dos espaços de mídia e produção do hip hop e tem a equipe composta por 25 mulheres negras de todo o País. Elas trabalham buscando normalizar a presença da mulher negra e pessoas LGBTQIA+ no segmento, registrando a história cultural no hip hop e fomentar o mercado de trabalho para esses grupos.
Júlia expõe que o desafio principal é o financeiro, principalmente porque muitas delas são mães, outras tem vários empregos ou até mesmo questões delicadas em casa. O projeto ainda atua como uma associação sem fins lucrativos e não possui nenhuma empresa financiando as ideias. Mas para além do financeiro, a CEO conta que uma das particularidades de ser um empreendedor negro na atualidade é estar dentro de um espaço no mercado que te reconheça.
“Você tem dificuldades de se comunicar, de se incluir, de ser respeitada. Além de ser mulher e jovem ainda, existem todas essas camadas onde as pessoas fingem que te escutam e você sabe que ninguém te escutou. A dificuldade de persuadir, de vender o seu projeto e ser levado a sério. É basicamente ter que ter que dar muita carteirada uma atrás da outra para as pessoas te respeitarem. Apesar da minha trajetória ser curta, eu tenho bastante coisa no currículo, mas eu não gosto de ser esse tipo de pessoa”, conta.
Mesmo com essas barreiras, Julia diz que outra particularidade, boa dessa vez, é poder ser referência e um ponto de partida para que as pessoas consigam entender que elas podem estar nos espaços, empreender e ir além. “Você chegar com um legado dentro de um mercado dificultoso e puxar as pessoas para dentro pra ter cada vez representatividade e cada vez mais pessoas semelhantes ao seu lado”, diz.
Se não nós, quem?
Para além dos projetos que surgem com o enfoque de contar histórias pretas, muitos profissionais negros da comunicação também vêm se unindo, diante de um mercado branco e excludente, para abrir as portas para outros profissionais negros e atuar na comunicação de forma abrangente. Felipe Silva, sócio da agência Gana, comenta que a empresa nasceu da insatisfação com o mercado publicitário que não abre espaço para profissionais diversos, em especial pretos e periféricos, ainda mais em cargos de decisão.
“Queremos trazer esse poder e essa potência da realidade preta para todas as marcas, mas desse lugar de decidir também as coisas, desse lugar de ser inteiro como profissional. Nós estávamos há muitos anos nas agências, chegavam muitos jovens nas agências, mas ainda faltava muita gente em cargo de liderança com poder de decidir e deixar que essas ideias, com a força da criatividade preta, cheguem na linha de frente”, comenta o executivo.
A partir desse modelo de negócio com propósito interno, ele revela que existe uma resistência de mercado de entender que eles não são um projeto social ou uma ONG, mas sim uma agência de publicidade que atua nos mesmos setores que as que já estão no mercado, com a diferença de ter profissionais negros e periféricos por trás.
“Nós fazemos todo o trabalho publicitário como as outras agências, só que apenas com mentes pretas e periféricas. Esse é o nosso desafio: que as pessoas tirem um pouco do olhar do racismo estrutural. Às vezes a gente chega até o lugar das pessoas quererem participar e sugerir uma ideia para um trabalho nosso. Nós somos uma agência como qualquer outra, você não liga para uma agência concorrente para querer se meter num job deles. Precisamos ser vistos e respeitados como uma agência do mercado”, afirma Silva.
Já na área da assessoria de imprensa, Juliana Oliveira fundou a Oliver Press em 2015, depois de passar por algumas experiências traumáticas em outras agências de comunicação que, segundo ela, eram comandadas em sua maioria por homens brancos, que não davam o espaço e o valor devido às mulheres e carregavam uma série de preconceitos.
“Foi uma decisão tomada muito rapidamente, mas, hoje, me mostra que foi o melhor caminho que poderia ter escolhido. À medida que os clientes foram chegando, a Oliver foi se estruturando. Mas, desde o início, o propósito era montar uma equipe composta por mulheres, com raças e etnias diversas, mostrar toda a nossa força e conhecimento, empoderá-las e levar a diversidade também para a atenção nas estratégias de comunicação de nossos clientes”, expõe Juliana.
Hoje, a empresa, composta por 30 mulheres, entre pretas, brancas, amarelas e indígenas, atende cerca de 50 clientes, divididos nos núcleos de inovação & empreendedorismo e diversidade & impacto social. Além disso, a Oliver Press atende outros empreendedores negros e presta consultoria para marcas que têm estruturado suas áreas de ESG e precisam se conectar com especialistas da área social ou necessitam comunicar melhor suas ações para seus stakeholders. A profissional conta que busca trazer a diversidade de olhares para entregar estratégias em assessoria de imprensa, relações públicas e comunicação corporativa.
“Temos que nos provar a cada dia. Viver a dor e a delícia de empreender em um País, onde, para essa parcela da população, ser dono do próprio negócio ainda é uma escolha atrelada à sobrevivência mais do que à vocação. Como uma mulher negra e empreendedora, tenho valorizado muito o trabalho em rede e a ideia de poder trazer para a minha empresa clientes e colaboradores negros. Viver o Black Money na prática, construir pontes que vão além de lidar com questões que todo afroempreendedor enfrenta no dia a dia, desde o preconceito racial e acesso a crédito ao racismo estrutural”, conclui a CEO.
**Crédito da imagem do topo: ARTsiri/Shutterstock
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