Meio & Mensagem
29 de agosto de 2023 - 6h00
Françoise Terzian
“Sai desse videogame e vai estudar, menino. Isso não dá dinheiro!” Crianças e adolescentes que viveram a febre do Atari nos anos 1980 certamente ouviram essa frase dos pais. O jogo, quem diria, virou. Hoje, ter um filho streamer de games, aquele que joga, transmite e narra cada movimento em tempo real, é motivo de orgulho de muitos pais.
A elite dos streamers chega a faturar de R$ 3 milhões a R$ 4 milhões por mês, graças à forte habilidade no jogo, ao carisma e, claro, à plateia crescente que tem trocado a televisão por plataformas como Twitch e YouTube e, claro, chamado a atenção dos anunciantes.
Em outro patamar, há os influenciadores que não são streamers, mas que vivem mergulhados no universo dos games. Eles criam conteúdos que atraem milhares de seguidores e a atenção das marcas. Muitos deles faturam entre R$ 40 mil e R$ 50 mil por mês — cifra superior ao salário de muitos executivos de empresas.
O stream ganhou grande visibilidade e tração durante a pandemia. “Ele tirou o gamer de trás da tela e o colocou na frente. Trata-se de um dos entretenimentos mais baratos que existe. Para o público jovem, o game é acessível e te permite jogar com muitas outras pessoas em um mesmo cenário, com as mesmas condições e, ainda, participar do chat e ter um feedback ao vivo”, explica Claudio Lima, CEO da Druid, creative gaming company que conecta marcas e gamers.
Não por acaso, o stream ajudou a socializar o ambiente gamer. Pesquisa da Twitch, plataforma da Amazon, aponta que metade dos usuários vê o streamer como amigo. O stream se transformou na TV ao vivo da internet e num grande veículo para divulgar conteúdo e marcas.
Coringa: universo gamer se retroalimenta e atrai a atenção das marcas (crédito: divulgação)
País dos streamers
Segundo Renan Philip, cofundador da 3C Gaming, gaming partner que cria, conecta e colabora com talentos, marcas e a comunidade gamer, calcula-se que o Brasil tenha mais de 15 mil streamers, entre profissionais e aspirantes, e esse número tende a crescer. As marcas, por sua vez, apostam mais neles. As categorias que mais investem no ecossistema de games e eSports são os bancos e as empresas de consumo. “O mercado asiático, a exemplo dos publishers e distribuidores de jogos, também tem mirado muito os influenciadores brasileiros por conta de seu impacto e potencial muito forte de conversão”, comenta Túlio Chebli, CEO da Kr3w.
Dada a boa taxa de conversão, muitos influenciadores passaram a comercializar produtos próprios. Chebli dá como exemplo Virginia que, em 13 horas de live, vendeu R$ 22 milhões em produtos da sua linha de cosméticos We Pink. Já o streamer Gaules em oito minutos de live vendeu 2,5 mil ingressos para um evento. Além do potencial de conversão, influenciadores usam estratégias e ferramentas call to action.
De um lado, produtos próprios. De outro, cocriação. Embaixador da Samsung, Itaú e 1Win, Victor Augusto Coringa trabalha com marcas que o deixam contribuir criativamente nas campanhas, dando sugestões e cocriando. “Dessa forma, consigo trazer a visão do público e tornar tudo mais fluido na relação”.
E como o influenciador tem ajudado as marcas a se aproximar de seu público? Coringa faz uma média de 8 horas diárias de lives, de segunda a sábado, com quadros como reacts de vídeos e interação com a audiência. “O principal efeito é o pessoal do meu chat, ou que me segue nas redes, engajando com as marcas e falando que estão consumindo aquele produto porque indiquei. É uma relação de muita proximidade e troca que tenho com o meu público e que acaba se estendendo para as marcas das quais sou embaixador”.
Coringa também investe em projetos proprietários que extrapolam o universo digital — caso do BGC que, em 2022, reuniu mais de quatro mil pessoas presencialmente em São Paulo e que terá uma segunda edição em breve. “É assim que esse universo se retroalimenta e eu trago as marcas para aproveitar a onda”.
No fim do dia, marcas e plataformas querem rejuvenescer e atingir o target que os streamers têm hoje. “O nosso público médio não consome mais conteúdo de TV e é muito pouco impactado por publicidade online ou publicidade de forma geral”, analisa Philip, da 3C Gaming.
Quando o Nobru faz live, explica, a mensagem entregue para uma média de 40 mil pessoas (em julho, o pico foi de 125 mil) geralmente é bem aceita. É um dos poucos momentos nos quais essas pessoas são impactadas pela publicidade. “O Nobru é o maior streamer do mundo no YouTube. Quando se fala em taxa de conversão para as marcas, a reação é instantânea. Exemplo: quando ele manda, em tempo real, um link para acesso”, conta Philip.
Com 14,3 milhões de seguidores no Instagram e 14,5 milhões no YouTube, Nobru (Bruno Goes dos Santos) trabalha atualmente com Coca-Cola, Gillette, iFood, Smart Fit, Nescafé Dolce Gusto, Trident e o próprio YouTube. “Gosto muito de atuar com marcas que me identifico e consumo, e setores como moda, bebidas, carros e bancos”, diz o atleta. Com apenas 22 anos, diz ter cabeça de 40. “Desde que estourei, muita coisa começou a acontecer na minha vida e nunca parou ou diminuiu. Sinto que já vivi 20 anos a mais de tanta mudança, conquista e novidade. E isso trouxe responsabilidades que não imaginava ter tão cedo na vida, especialmente nos negócios”, conta o streamer e empreendedor.
Também sócio do Fluxo, organização de esportes eletrônicos criada em janeiro de 2021, Nobru divide seu dia entre lives, gestão do Fluxo, entregas comerciais, dentre outros projetos. “Se eu tivesse que fazer uma média, diria que por dia são 8 horas de live, 6 horas para meus projetos e entregas, além do tempo para academia e lazer”.
“A relação dos streamers com as marcas é a base do nosso crescimento”, explica Philip, da 3C Gaming, empresa fundada em 2020 que deu origem a dois outros negócios (a organização de eSports Fluxo e a agência Kr3w, de gestão da carreira, que atende 150 influenciadores de games) e saltou de dois para 80 funcionários. Com a pandemia, mais pessoas descobriram — e continuam a descobrir — que jogar é legal. Os games voltaram forte à rotina de muitos, inclusive pela facilidade de socializar digitalmente. Isso ainda ocorre no momento em que outras plataformas de influência começam a entregar menos.
“O stream passa a ser cada vez mais relevante porque a influência é muito forte no Brasil, o marketing de influência é relevante, mas plataformas como Instagram e Twitter não estão mais entregando como antes. Está difícil o engajamento. No live streaming, não temos esse problema. Durante as horas que o Nobru fica ao vivo, quase que diariamente, fala-se muito sobre conteúdo e, no meio disso, se entra uma inserção publicitária ou não, não perdemos audiência”, observa Philip.
Flakes Power foi o primeiro criador de conteúdo da América Latina a ter uma skin no game Fortnite (crédito: Divulgação)
Menos TV, mais streaming
O Brasil é um mercado importante que domina as transmissões localmente. “Continuaremos a expandir nossa equipe local não apenas para manter essa posição de liderança, mas também para fornecer aos criadores e parceiros estratégias personalizadas para solidificar o Brasil como um de nossos principais mercados e centros de inovação”, afirma Anadege Freitas, diretora de parcerias e conteúdo da Twitch Brasil.
A plataforma, explica a diretora, tem várias ferramentas de monetização em escala para parceiros, incluindo assinaturas pagas; bits, que permitem que os espectadores apoiem os streamers; e anúncios com compartilhamento da receita. “Nos últimos anos, a Twitch se tornou uma maneira cada vez mais popular para as empresas interagirem com seus fãs, gerarem receita e construírem uma comunidade. Essa nova relação está expandindo as comunicações diretas entre os membros e as marcas”, conta Anadege.
Como exemplo, no ano passado, a NBA foi transmitida ao vivo em português pelo Gaules, um parceiro brasileiro e um dos maiores criadores de conteúdo do mundo. Esse movimento traz um fato que não é surpresa para ninguém. O crescimento contínuo do stream. “Quando comecei minha carreira, os anunciantes sempre solicitavam quatro mídias — filme de TV, spot de rádio, placa de outdoor e anúncio de revista. Hoje, o anúncio de uma campanha inteira tem 50 pontos de contato. O dinheiro diluiu”, observa Lima. A verba publicitária não é mais canalizada, mas espalhada por vários lugares como os muitos galhos e troncos de uma árvore.
Embora o número de streamers tenha explodido durante a pandemia, posteriormente passou por um rebalanceamento e, hoje, sinaliza que o campo está longe de se esgotar. Segundo a Statista, a plataforma de transmissão de vídeo ao vivo Twitch registrou 7,59 milhões de streamers ativos em julho de 2023 ante o pico de 9,89 milhões em janeiro de 2021. É o que os especialistas chamam de “seleção natural”, já que uns se destacam da multidão enquanto outros são sugados pela concorrência ou desistem pela falta de crescimento e capacidade de geração de receita.
Licor e streaming
Segundo a MindMiners, plataforma de pesquisa de mercado digital, 71% dos consumidores de licores na faixa etária de 25 a 34 anos consomem regularmente canais de streaming. Agora imagine Amarula, cujo público é majoritariamente feminino e se concentra na faixa etária 35+, representando 59% da base total de consumidores. Com o objetivo de rejuvenescer a marca e comunicá-la dentro da faixa de 21 a 30 anos, Amarula estabeleceu como um de seus pilares estratégicos o recrutamento do público jovem e, desde então, vem trazendo produtos que conversem mais com esse target como, Amarula Raspberry, licor que agrada o paladar mais adocicado dos jovens, e Amarula Vegan, uma proposta para os consumidores mais conscientes.
As campanhas de lançamento desses produtos tiveram as influenciadoras Bianca Andrade, a Boca Rosa, a atriz Agatha Moreira, e Gabriela Cattuzzo, a Bagi. “Ela se destacou dentro do nicho streamers pelo forte engajamento junto à base de seguidores. Além disso, o cabelo rosa da influenciadora remete ao color code da ação tática de Barbiecore realizada pela marca”, explica Bárbara Ramos, brand manager de Amarula. “O conteúdo da Bagi foi o que obteve o melhor resultado na ação.”
Foi a primeira vez que a Amarula se comunicou com esse público e, dessa forma, passou a considerar o Twitch em sua estratégia multicanal. Não só pela importância da rede no perfil streamers como pela forte incidência da categoria de bebidas na plataforma. Pesquisas realizadas na rede apontam que 80% declaram consumir bebidas enquanto jogam videogame.
“Com a rotina corrida de trabalhos e/ou estudos, quando chegamos em casa e temos esse momento de lazer que, às vezes, é jogar, nós adultos temos esse prazer em consumir uma bebida prazerosa de uma forma que complementa. Afinal, a bebida está relacionada a curtir o final de semana e esse escape para descansar”, conta Bagi.
Assim que recebeu o convite para realizar essa ativação da Barbiecore com Amarula Raspberry, Bagi diz ter ficado muito animada. “Meu público recebeu muito bem e, principalmente, se divertiu. Foi uma campanha visualmente agradável, com a paleta de cores somada com toda a preparação de drink”, diz.
Gabriela Cattuzzo, a Bagi, em ativação de Barbiecore com Amarula Raspberry, (crédito: divulgação)
Consolidação dos streamers
A tendência é de surgimento de novos streamers de carona com o boom vivido pelo universo mundial de games. Até dezembro, serão 3,38 bilhões de jogadores no globo, um avanço de 6,3% em comparação ao ano passado. Os dados são do estudo Global Games Market Report, da Newzoo. O acesso móvel contribuirá com a maior parte desse crescimento assim como a oferta de games gratuitos. Mas os assinantes/pagantes também se multiplicam, devendo chegar a 1,4 bilhão até dezembro, salto de 7,3%. Para 2026, a previsão é atingir 1,6 bilhão de pagantes.
Em termos de faturamento, a projeção da Newzoo é que o setor alcance, globalmente, US$ 187,7 bilhões em 2023, 2,6% a mais do que no ano passado. Para 2026, a previsão é que o mercado fature US$ 212,4 bilhões. E esse crescimento impulsiona streamers e criadores de conteúdo. “O streamer é aquele que joga as 110 horas de um jogo, vai a fundo e narra. Ele fica dedicado o tempo todo a um ou dois jogos, mergulha no detalhe, educa e prende a atenção do público por horas. Já o influenciador faz review, fala de lançamento, compara um game com outro, faz unboxing”, explica Pedro Derbli, head of gaming da agência Cheil.
Ambos têm seu valor para as marcas que, encontram um número crescente de perfis. “Isso significa mais opções e poder de segmentação. As marcas estão muito ligadas no engajamento, que é mais importante que números”, explica Derbli.
Mais populares, os games penetram nas diversas camadas da população e continuam a acompanhar os jogadores à medida que vão envelhecendo. “2023 será um ano emocionante para o universo mundial de jogos”, afirma Tom Wijman, analista líder de jogos da Newzoo. O Global Games Market Report também indica tendências do universo. Mais da metade dos 3,38 bilhões de jogadores vivem na Ásia, seguido por Oriente Médio & África, Europa, América Latina (335 milhões) e América do Norte.
Depois do Oriente Médio & África, a segunda região que mais cresce é a América Latina (6,1%). E o Brasil desponta tanto em número de jogadores profissionais quanto amadores. “Podemos destacar que o envolvimento com games é algo muito forte na cultura dos brasileiros. Hoje, 70% de pessoas declaram jogar algum tipo de jogo eletrônico, volume alto e representativo há alguns anos”, afirma Carlos Silva, sócio da consultoria especializada Go Gamers.
Para Yayah, o ponto forte de suas lives, além dos games, é o just chatting (crédito: divulgação)
Atrás apenas de Neymar
Criador de conteúdo para a internet, Flakes Power (o catarinense João Sampaio, 26 anos, 6,81 milhões de seguidores no YouTube, com o canal de games voltado ao Fortnite) iniciou seu canal sete anos atrás, com conteúdo de Clash Royale. Depois de três anos, migrou para o Fortnite. Foi então que sua vida mudou. “Quando produzia conteúdo de Clash Royale, era uma época em que jogos mobile não eram valorizados e, mesmo tendo grande público, não tinha apelo comercial. Era difícil furar a bolha. Com o Fortnite, as coisas mudaram por completo. Pelo jogo ser mais mainstream, o canal cresceu e mais pessoas de outros jogos passaram a me conhecer”, recorda.
Recentemente, Flakes Power foi o primeiro criador de conteúdo da América Latina a ter sua skin dentro do jogo, e o segundo brasileiro após Neymar. “A partir de agora, as pessoas podem jogar vestidas de Flakes Power e isso é incrível, algo que nunca imaginei”, afirma o criador que tem patrocínios de Samsung e Red Bull.
Expansão feminina
Natural de Valparaíso, em Goiás, Ingrid Larissa, mais conhecida por Yayah, é uma das principais streamers femininas do País, entusiasta de futebol e atleta de judô. Com mais de 400 mil seguidores na Twitch e mais de 300 mil no Instagram, joga Valorant e alguns games recém-lançados e de variedades. “Além dos games, minhas lives têm um ponto bem forte com o just chatting, que é uma opção de transmissão ao vivo para ficar conversando e fazer reacts de outros vídeos. A galera curte muito e me acompanha bastante nesse estilo”.
Até por isso, Yayah acredita que a parceria mais genuína que pode oferecer às marcas é fazer suas entregas exatamente em lives. “O meu público me conhece muito bem e sabe quando aquilo me representa e quando estou à vontade em comunicar algo e é justamente nas lives que a marca terá sempre a melhor versão de mim.”
O universo gamer tem atraído mais mulheres. Esse é o caso de Layze Lahgolas Brandão. Há pouco mais de um ano, deixou São Luís, no Maranhão, rumo a São Paulo. Foi a proximidade com os games que a trouxe para a capital paulista. Aos 35 anos, a expert em League of Legends (LoL) trabalha como caster (narra, comenta, analisa e apresenta) na Riot Games. Em paralelo, conduz um trabalho inclusivo que criou em 2021. Trata-se do Revelah Casters, cujo intuito é desenvolver e profissionalizar mulheres e não-binários na área de casting.