Opinião: A beleza irreal de Dove
A campanha se autointitula um ?experimento social? quando é uma ação paga. Um experimento social, no sentido científico, exigiria um grupo de controle, além de uma série de medidas para evitar resultados com viés
A campanha se autointitula um ?experimento social? quando é uma ação paga. Um experimento social, no sentido científico, exigiria um grupo de controle, além de uma série de medidas para evitar resultados com viés
Meio & Mensagem
30 de abril de 2013 - 9h00
Por Rodrigo Leão (*)
No dia 22 de abril deste ano, o link para o vídeo “Dove Real Beauty Sketches”, um job da Dove mundial criado pela equipe da Ogilvy do Brasil acabava de ultrapassar 19 milhões de visualizações no YouTube. Obtinha aproximadamente 80 mil joinhas (likes) e apenas 1800 dedões pra baixo (dislikes). Sob qualquer ponto de vista, um sucesso estrondoso de comunicação de massa. O público feminino se manifestando apaixonado pela peça. É o sonho de todo publicitário. Se você não assistiu, pare de ler, vá ver e volte daqui a pouco.
Do ponto de vista formal — estrutura criativa, realização e eficiência —, a peça é irretocável. Não há o que comentar a não ser com aplausos. Se nosso trabalho for apenas dizer, da melhor maneira possível, com síntese e pertinência, graça e eficácia àquilo que nos mandam dizer (ou o que concordamos em dizer), então o texto para você acaba aqui. Mas se você acha que a propaganda pode ter algum tipo de papel em formular um mundo melhor e que o publicitário tem o direito de participar e contribuir com sua ética pessoal no resultado de seu trabalho, então, há muito o que se ponderar.
Primeiro, a respeito dessa propaganda se autointitular um “experimento social” quando, de fato, é uma ação paga e patrocinada (certamente com pesados investimentos no Google e Facebook como seria de se esperar) para convencer mulheres de uma certa faixa etária e renda a comprar produtos de higiene. Um experimento social no sentido científico da expressão, como os conduzidos por psicólogos sociais, economistas ou filósofos, exigiria um grupo de controle, além de uma série de medidas para evitar resultados com viés. Como se descrevem os homens? E as crianças? E os idosos? Há diferença entre grupos étnicos ou raciais? Entre grupos com educação de diferentes níveis? Etc. Ou seja, já começamos com uma mentira.
E por que uma propaganda precisa tentar se passar por um experimento? Pelo mesmo motivo que o desenhista era do FBI. Para criar uma falsa aura de credibilidade. E assim que se estabelece o climinha pseudocientífico. A propaganda demonstra lindamente algo que as mulheres já acreditavam ser verdade de antemão: que elas são de fato mais bonitas do que se acham. Curiosamente, as protagonistas que se percebem bonitas na propaganda são brancas, magras e aparentemente jovens. Algumas mulheres negras e até uma asiática aparecem na figuração com o objetivo de pegar bem. E a história termina com milhões de mulheres pensando: “puxa, Dove realmente me dá valor, enxergando em mim a beleza que nem eu enxergo.”
Mas pensemos um pouquinho mais: ao celebrar a tal da "beleza real" das gordinhas, pintadinhas, narigudinhas e bundudinhas com experimentos falsos, Dove celebra antes de tudo a beleza como um parâmetro para se medir uma mulher. Dove não diz "ei amiga, a beleza não importa nada" porque aí você não ia comprar os chamados produtos de beleza da Dove, né?
A verdade é que uma das maiores culpadas por ela se sentir feia é a própria Unilever, dona da Dove, que investe milhões pra dizer que toda mulher é bonita e depois gasta muitos milhões a mais mostrando somente modelos magras, jovens e lindíssimas bolinando rapazes argentinos em propagandas da Axe. Depois gasta mais milhões com as atrizes supergatas da Globo nas campanhas da TRESemmé. E pra arrematar deixa o mulherio cheio de celulite com os sorvetes da Kibon e a maionese Hellmann’s. Os produtos Dove tem muitos atrativos técnicos. Por isso a marca de fato nem precisava apelar pra mentira e populismo demagógico.
Acredito que a Unilever tenha todo o direito de ter todas as marcas que quiser. Só acho que essa oposição de princípios fundamental entre os posicionamentos de suas muitas marcas termina por sugerir apenas um princípio: o lucro a qualquer custo. É como se a uma empresa ao mesmo tempo nos vendesse armas e fizesse campanha pelo desarmamento. Um tiro que pode sair pela culatra.
(*) Rodrigo Leão é sócio-diretor de criação da Casa Darwin e professor dos MBA de Marketing, MBA Executivo Internacional e International MBA da FIA. Este texto foi publicado na edição 1557, de 29 de abril, nas versões impressa e para tablets do Meio & Mensagem.
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