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Especialistas avaliam Lei Rouanet pré e pós mudanças

Para a maioria dos projetos, teto de captação não deve gerar grandes mudanças, mas exigências excessivas de contrapartidas denotam falta de visão do governo quanto à dimensão econômica da cultura


29 de abril de 2019 - 13h09

 

Apresentação gratuita da Orquestra Arte Viva, pelos 100 Anos da Livraria Saraiva, no Parque da Juventude, em São Paulo, coordenada pela Divina Comédia (Crédito: Adilson Silva/Foto Perigo)

No início da semana passada, o governo federal anunciou uma instrução normativa (IN) alterando o programa federal de incentivo à cultura — Lei 8.313/1991, conhecida como Lei Rouanet, por ter sido criada pelo diplomata e então secretário de cultura da Presidência da República, Sérgio Paulo Rouanet. Com o programa, pessoas físicas e jurídicas passaram a poder abater total ou parcialmente de seu imposto de renda valores investidos em cultura.

A IN publicada pelo Ministério da Cidadania, reduziu o teto do valor que os projetos poderão captar via Lei Rouanet de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão. Além disso, cada proponente poderá ter até 16 projetos aprovados, num máximo de R$ 10 milhões de captação. As limitações não se aplicam, no entanto, a planos anuais de instituições culturais, projetos sobre patrimônio cultural material e imaterial e museus, assim como à construção, conservação e implantação de equipamentos culturais.

O teto também não se aplicará à construção e manutenção de salas de cinema e teatro em cidades com menos de 100 mil habitantes. Outra alteração na Lei é que todas as produções passam a ter de oferecer contrapartidas sociais (antes, isso acontecia somente com os planos anuais), como atividades de formação cultural, e o valor de ingressos gratuitos terá de subir para um mínimo de 20% do total, podendo chegar a 40%. Além disso, 10% dos ingressos deverão custar até R$ 50.

As mudanças anunciadas causaram agitação em parte do segmento cultural. Ouvimos três personagens relacionados ao mercado quanto ao que a Lei Rouanet representou para a cultura e o marketing cultural desde que foi criada, assim como o impacto das mudanças anunciadas na última semana. Leia, a seguir, os depoimentos de Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural; Sergio Ajzenberg, fundador da Divina Comédia, produtora de eventos culturais; e João Figueiredo, coordenador do Núcleo de Economia Criativa da ESPM Rio. Em comum, na análise dos três, está o fato de que a Lei Rouanet, em sua versão original, jamais foi completamente praticada, o que em si, poderia ter evitado parte das críticas que ela sofreu ao longo de sua existência, e que, de toda forma, ela é parte central da evolução da indústria cultural do País.

Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural (crédito: divulgação)

Eduardo Saron – Diretor do Itaú Cultural

Lei Rouanet original
“A Lei de incentivo à cultura é o principal instrumento de fomento para a produção cultural brasileira, desde o aspecto simbólico à economia criativa. Desde que a Lei Roaunet foi criada, em 1991, gerou um impacto total sobre a economia brasileira de quase R$ 50 bilhões, por meio de mais de 53 mil projetos patrocinados nesse período.

Entretanto, ela nunca foi implementada por completo da forma como foi pensada desde seu início. O que é conhecido por Lei Rouanet é o mecenato, mas, na verdade, ela é formada por um tripé:  o mecenato, em si, o Fundo Nacional de Cultura (FNC) e os Fundos de Incentivo Cultural à Arte (Ficarte). É preciso lembrar que esta lei surge debaixo da égide da Constituição Cidadã, da interação da sociedade com as políticas públicas. Cria-se, nesse momento, a possibilidade de o mundo cultural dialogar com a sociedade brasileira por meio dos empresários e das pessoas físicas, que obtêm incentivo fiscal para estimular a cultura.

Neste tripé, o FNC foi sendo cada vez mais fragilizado até que, nos últimos sete anos, ele tem ficado mais e mais rarefeito, em virtude da diminuição dos recursos que deveriam alimentá-lo. Este fundo tem um papel fundamental para uma melhor distribuição de recursos, que fale com os vários brasis, com a produção independente e aporte editais. Para isso, 3% da arrecadação bruta das Loterias Federais teria de ser obrigatoriamente destinado ao FNC, porém, nesses últimos sete anos têm sofrido sucessivos contingenciamentos. Mais de R$ 1,5 milhão deixou de ser aplicado na FNC e tornou-se superávit fiscal, fragilizando brutalmente uma das maiores exigências que a sociedade e o mundo da cultura fazem, que é o da distribuição geográfica e de perfil de projetos mais equilibradas.

Na outra ponta, estão os fundos do Ficarte, que o legislador, ao pensar neste mecanismo, teve como objetivo aportar recursos, fundamentalmente, para a economia criativa, ao tornar possível que o show business pudesse se utilizar desses investimentos para alimentar os projetos. Porém, esse mecanismo nunca foi regulamentado por completo.

Diante desse cenário – a não implementação da lei como um todo, tanto para as necessidades do FNC voltado para a distribuição de recursos ao pequeno produtor cultural e àquele que está distante geograficamente, quanto das múltiplas possibilidade dos investimentos no Ficartes –, tenta-se suprir esta deficiência pelo mecenato, o que acaba distorcendo os papéis de cada um e ampliando as críticas à Lei Roaunet.

Importante lembrar, também, que outros países têm incentivo fiscal para a cultura. A França é um exemplo, o incentivo foi implementado lá pelo então primeiro-ministro Jacques Chirac, um conservador. Outro exemplo são os Estados Unidos, que também tem esse tipo de incentivo”.

Nova Rouanet
“Observemos que a Instrução Normativa para a Lei Federal de Incentivo à Cultura é um instrumento que tem acontecido corriqueiramente. Veja que esta já é a número seis, ela revoga a IN 5/17 do extinto Ministério da Cultura. Nesta IN atual, encontram-se situações que precisam ser mais bem definidas, uma vez que podem gerar problemas para o mundo cultural e da economia criativa. Por exemplo, a impossibilidade de o produtor cultural ter uma bilheteria maior do que o recurso captado. A gratuidade da bilheteria é importante e necessária, mas precisa ser entendida como instrumento de potencialização do incentivo fiscal, oferecendo a possibilidade de diminuir a dependência a esse incentivo conquistado. Ao restringir o valor da bilheteria ao valor do incentivo fiscal, no entanto, amplia-se a dependência sobre ele, se perdendo a chance de funcionar como uma alavanca para a economia criativa.

Uma outra questão que preocupa, também, é o teto limitado a R$ 1 milhão. Isso afetará fortemente importantes espetáculos teatrais, um setor que tem contribuído para as artes cênicas brasileiras e gerado muitos empregos. É preciso que haja um teto, mas de R$ 1 milhão estrangula o setor.  Portanto, fica claro que é preciso que seja aberto um diálogo com a sociedade para aprimorar a lei.

Por outro lado, a nova IN prevê a necessidade de que cada projeto tenha um programa de formação de plateia. Antes, isso era restrito aos planos anuais, mas formar plateia é algo fundamental para este País com tantas carências e com tanta necessidade de construção de um repertório artístico cultural. Inclusive, é importante que as estruturas de marketing compreendam a formação de público como estratégia de diminuição dos equilíbrios sociais e de construção de vínculos.

Independentemente desta IN, é preciso que, cada vez mais, as empresas busquem projetos consistentes do ponto de vista artístico cultural. Tanto a consistência é importante, quanto o é a governança dos projetos. A qualidade precisa ser aferida também pela governança das empresas e pela forma como isso é gerido, pois garante transparência e boas práticas no uso dos recursos empregados. Um bom projeto não pode ser só bom culturalmente ou só do ponto de vista da governança; os dois devem andar de mãos juntas para que as empresas aportem os seus recursos de maneira mais tranquila e ao mesmo tempo ter o impacto artístico cultural do projeto apoiado”.

Contrapartida social
“A Lei Federal de Incentivo à Cultura precisa sempre olhar para os vários brasis que compõem o Brasil. Não somente no aspecto geográfico, mas também para projetos que, muitas vezes, não têm tanta repercussão reputacional sobre a marca de uma empresa em um primeiro momento. No caso do Grupo Itaú, aliás, nós temos um forte compromisso com a constituição e preservação da memória da arte e da cultura no Brasil. No entanto, essas políticas públicas de fomento só seriam mais eficientes se o FNC, que tem justamente papel fundamental na Lei Federal de Incentivo Fiscal para uma melhor distribuição de recursos, fosse devidamente implantado”.

Consequências das mudanças
“Todo debate qualificado sobre a Lei Rouanet é bem-vindo, pois responde às demandas da sociedade por mais transparência, aos desejos da produção cultural por melhor qualidade na aplicação dos recursos e, naturalmente, amplia a segurança das empresas em associar a sua reputação e marca ao mundo artístico cultural. No entanto, só perceberemos objetivamente se as novas medidas surtirão efeito positivo com o passar do tempo. Observe que, até agora, a cada R$ 1 investido por patrocinadores em projetos culturais por meio da Lei Rouanet, R$ 1,59 retornava para a economia do País, segundo estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas, apresentado em dezembro do ano passado. Esse, certamente, é um dos vários dados que todos precisamos compreender para sabermos o valor da cultura, sem contar a força da arte e da cultura na construção do pensamento crítico e criativo de seu povo. Portanto, é, de fato, muito importante que o Ministério da Cidadania escute o setor cultural para eliminar equívocos existentes, como apontei anteriormente”.

Sergio Ajzenberg, fundador da Divina Comédia (crédito: divulgação)

Sergio Ajzenberg – Fundador da Divina Comédia

Lei Rouanet original
“É uma lei que teve uma importância enorme no desenvolvimento da cultura no Brasil nos últimos anos, de maneira clara e incisiva, pois criou uma indústria cultural; uma indústria do cinema, de musicais, um mercado de técnicos, músicos e orquestras extraordinárias. Formalizou milhares, talvez milhões de empregos. Possibilitou que a cultura saísse do patamar do holístico, do pertencimento da população e fizesse parte da economia, com participação nos PIBs das cidades, dos estados e do Brasil — o que chamamos de economia criativa. Isso com um benefício fiscal razoavelmente baixo, em relação a todos os benefícios fiscais no Brasil. Temos R$ 312 bilhões de renúncia fiscal e o volume da Lei Rouanet varia entre 900 milhões e R$ 1,2 bilhão.

Um benefício fiscal pequeno que deu possibilidade a um desenvolvimento extraordinário dessa indústria. Houve melhorias nos equipamentos culturais, em teatros, musicais. Formamos pessoas melhores na dança, na música, técnicos melhores de som e luz, equipamentos mais modernos que dão mais conforto ao público e, claro, salas de espetáculo. Pessoas acabaram se dedicando a melhorar as coisas, ainda mais com o digital vindo. E conseguimos acompanhar isso. Hoje, podemos fazer filmes para Netflix e outras grandes produtoras de seriados e streaming. Houve grandes shows internacionais que não vieram diretamente pela Rouanet, mas porque ela permitiu a formação de melhores técnicos aqui. Grandes musicistas, atores e atrizes vieram desse momento virtuoso da cultura nacional, além de termos deixado de ser o 15º país possível de se ter uma exposição de um Picasso e grandes nomes do mundo das artes plásticas, com museus batendo recordes comparados a grandes exibições no mundo inteiro. Além de ter um povo que pode se orgulhar de seu País e artes, com uma Tarsila Amaral, agora no Masp, por exemplo.

E essas coisas, como qualquer indústria, precisam de dinheiro. Não há projetos tão auditados quanto os nossos, na Lei Rouanet. Ao contrário do que fazem com benefícios para empresas como as de eletrônicos e automóveis. Há desvios? Sim e isso tem de ser combatido. Quem desviou recursos tem que ser condenado, são casos policiais e não dos projetos de Lei. Por último, a Lei Rouanet é tão espetacular que é o único benefício fiscal que é R$ 1 bilhão, mas todos os projetos eram assinados pelo MiNc e, agora, Ministério da Cidadania. Um carro feito no interior de São Paulo, com imposto mais barato, não tem a marca do governo, assim como aquilo que é produzido na zona franca de Manaus, com benefício do Ministério do Desenvolvimento”.

Nova Rouanet
“Vejo com um pouco de tristeza. Não houve entendimento, principalmente num governo que se diz liberal na economia, de que isso é importante para o desenvolvimento da nação, da educação do povo.

Por outro lado, vemos com esperança de que haverá mudanças nos próximos meses. A demanda pelas empresas e pela cultura será superior a essas necessidades de se romper com a Lei Rouanet. O problema é que Lei Rounet tem três pernas, a do mecenato, que todos conhecem – o governo dar a possibilidade de captar com as empresas no mercado —, o Ficarte e o Fundo Nacional de Cultura, em que 3% das loterias deveriam vir para esse fundo. Se viesse, toda essa história de quem reclama de concentração dos projetos no Sudeste acabaria. Haveria projetos fora do eixo Rio-São Paulo e se poderia desenvolver novos profissionais com os R$ 400 milhões, R$ 500 milhões que deveriam receber e com dinheiro de orçamento.

E quanto às obrigações de contrapartida social: primeiro, todos os projetos têm causas sociais. Musicais de R$ 13 milhões convidam escolas gratuitamente, convidam para ensaios; há museus que cobram R$ 10 de entrada para grandes exposições. O projeto Guri também capta da Rouanet, a Osesp tem projeto de primeiro público, recebe pessoas nos ensaios. Corretamente, se pede mais para a baixa renda, mas não se faz uma indústria quando obriga o mercado a dar meia entrada para todos os estudantes e professores. Não se discute se merecem ou não, podem merecer, mas é uma indústria que faz isso sem receber nada em troca. Um ônibus da prefeitura quando dá passagem para estudante e idoso faz um borderô e a prefeitura ressarce as empresas”.

Casos Petrobras e Ancine
“Os problemas do TCU com a Ancine não conheço em profundidade para falar a respeito. Sobre Petrobras e Eletrobras, faziam uso da Lei Rouanet como qualquer outra empresa. Apoiavam projetos que interessavam para suas marcas – musicais, museus. O CCBB é importante para a população, suas mostras e também para a marca do Banco do Brasil. A Caixa também tem sua sala de exposições. Por isso, também, o Bradesco patrocina seus teatros e o Itaú tem seus espaços. É importante para as marcas. Sempre houve pessoas extraordinárias no marketing dessas empresas escolhendo projetos importantes para suas marcas, clientes e seus demais públicos. Claro que é um dinheiro que o governo pode dirigir, mas especialistas do Banco do Brasil ou da Caixa sabem melhor do que nós onde querem aprovar projetos aptos a captar via Rouanet”.

Consequências das mudanças
“No curto prazo é problema. Até conseguirmos nos adaptar, assim como as empresas. Na verdade, houve muitas instruções normativas, as últimas para melhor, mas todo mundo leva tempo para olhar e saber o que é exatamente. Se viveu de muitos percalços estes últimos anos. A população cultural e o mundo cultural, de modo geral, é muito resiliente. Vamos resistir, achar caminhos bacanas para continuar o desenvolvimento da cultura, do mercado e da indústria cultural. Acredito que em algum tempo deve haver mudanças para melhorar a lei. Num movimento de desenvolvimento do PIB e crescimento do Brasil, se melhorará isso. Imagino que daqui uns sete a 12 meses. Haverá mais pessoas envolvidas em melhorar a Lei de Incentivo. Segundo dados recentes, a economia criativa, com a cultura dentro, representava 2,64% do PIB. A consultoria PwC prevê que, nos próximos anos, a economia criativa crescerá mais que a média das outras. No Brasil, apesar da recessão e do baixo crescimento, a indústria da cultura cresce mais que a média do País”.

João Figueiredo, coordenador do Núcleo de Economia Criativa da ESPM Rio (crédito: divulgação)

João Figueiredo – coordenador do Núcleo de Economia Criativa da ESPM Rio

Lei Rouanet original
“A Lei Rouanet foi fundamental para recuperar a produção cultural do País a partir dos anos 1990, diante do desmonte que havia acontecido das políticas anteriores. Foi um mecanismo de financiamento importantíssimo com uma característica de evitar o dirigismo cultural, ou seja, como o recurso vinha de uma renúncia fiscal do governo, mas os projetos eram elaborados por empresas do mercado e o recurso alocado a partir da decisão de outras empresas que adotavam o sistema do benefício fiscal, o governo não era responsável por definir quem receberia o projeto.

Esse era um dos maiores mitos da Lei Rouanet: que o governo usava o mecanismo para defender seus interesses. Sem a Lei Rouanet, não teríamos tido nos anos 1990, 2000 e até hoje boa parte da produção cultural que vivemos em teatro, apresentações culturais, museus, as grandes exposições e reformas de patrimônio. Nada disso teria acontecido. O grande problema da Lei Rouanet é que ela nunca se realizou completamente. A grande crítica sobre ela é a concentração dos recursos no eixo Rio-São Paulo. De fato, esse foi o grande problema, porém, se a lei tivesse sido implementada integralmente, isso não teria acontecido. Porque ela foi prevista com três mecanismos – mecenato, que gerou a concentração, o Ficarte e o Fundo Nacional da Cultura, que tem orçamento próprio, com repasse das loterias, mas todo ano ele tem esse dinheiro contingenciado. Este seria o mecanismo para desconcentrar. Permitiria que o governo, por editais, fizesse essa desconcentração. E não é pouco dinheiro; ano passado eram R$ 650 milhões para fazer editais. Só que a cada ano que passa o contingenciamento é maior”.

Nova Rouanet
“Houve muito mais barulho em torno das possíveis mudanças do que efetivamente mudanças. Se falou muito que a lei iria acabar, teve a história da mudança de nome, mas é mais uma tentativa de o governo dizer ao público dele que resolveu algo no País, numa lei que, na visão dele, era um grande problema. A mudança mais sensível é a do teto para R$ 1 milhão, mas se abrirmos os dados da Rouanet veremos que não tem grande impacto.

Ano passado, foram mais de três mil projetos, dos quais 150, aproximadamente, captaram acima de R$ 1 milhão. Só esses seriam afetados, mas não eles todos, porque existem as exceções ao teto — museus, patrimônios culturais, datas festivas. O único segmento que foi efetivamente afetado por essa mudança do teto foi o teatro musical, porque eles não realizam, de fato, as produções dos últimos anos com apenas R$ 1 milhão. Para o marketing cultural e empresas que utilizam a cultura para promover seus valores não vai mudar muita coisa. A empresa vai poder continuar apoiando museus, as óperas, a recuperação de patrimônio. Muitos concertos poderão continuar sendo apoiados. Efetivamente, o que vai mudar é o teatro musical.

Nos últimos 10 anos, no Brasil, eles tiveram fortes relações com marcas, e terão de entender quais os novos modelos de negócio das produtoras. Provavelmente, vão reduzir temporadas ou orçamento para continuar a produzir. Ao mesmo tempo, algumas produtoras de espetáculos no Brasil, especialmente do Rio de Janeiro e São Paulo, vão desenvolver planos para terem seus próprios espaços para as apresentações. Se tiverem, conseguem captar, através de um outro CNPJ para a realização de um plano anual ou plurianual, em que o orçamento permita realizar suas produções. O patrocínio funcionará não pelo projeto, mas pelas casas. As marcas poderão apoiar os equipamentos culturais, até com naming rights. Temos o Teatro Net, no Rio de Janeiro e em São Paulo; o Teatro Bradesco, no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Teremos cada vez mais as marcas se associando aos equipamentos e talvez menos aos projetos. Continuarão, mas com esse teto, talvez haja migração para equipamentos e isso apenas no teatro musical, porque outras áreas serão pouco impactadas por essa Instrução Normativa. As mudanças não serão grandes do ponto de vista das marcas, mas mais para quem produz, que terão de se adequar à gratuidade dos ingressos, mas do ponto de vista das marcas que apoiam, a maior parte dos projetos continuará do mesmo jeito. O Carnaval do Rio de Janeiro, o Natal de Gramado, as reformas de museus não têm esse teto”.

Contrapartidas sociais
“Todas as mudanças que se fazem em leis no Brasil que têm por objetivo desconcentrar recursos do eixo Rio de Janeiro e São Paulo e melhorar o acesso dos diversos grupos sociais aos produtos culturais e melhore a educação no País são soluções bem-vindas. O Brasil é um país muito desigual e, por isso, quando se fala em desconcentrar é bem-vindo. O problema não é esse tipo de visão na lei, o problema é como se deu um peso excessivo a essa questão educacional – gratuidade entre 20% e 40% dos ingressos, obrigação de “toda” atividade cultural ter uma ação educativa. Quando se lança um olhar muito detalhado sobre isso, me parece que perdemos a dimensão econômica da cultura.

As políticas culturais no mundo e mesmo em países desenvolvidos reconhecem toda a importância da cultura para realizar essas ações educativas e identitárias, mas também a reconhecem como um campo de atividade econômica muito pujante no século 21, geradora de PIB, de renda, de emprego, de efeitos indiretos na economia. Quando se escuta o discurso dos gestores públicos, parece que não se reconhece a cultura como uma atividade econômica importantíssima a ser potencializada. Isso é um problema. Além disso, mesmo a boa intenção de desconcentrar os recursos e baratear ingresso são questões que criam outras dificuldades.

No sistema do mecenato, é tributado sobre empresas que têm lucro real. Elas estão concentradas no eixo Rio de Janeiro-São Paulo e isso dificulta a desconcentração. Já evita que elas possam, regionalmente, apoiar projetos.  Pelo teto, haveria um excedente que poderia ser destinado a outras regiões, mas não sei se isso vai acontecer. Isso já seria atribuição do Fundo Nacional de Cultura.  Ao jogar para o mecenato a responsabilidade de distribuição parece que vai enterrar de vez o FNC, que seria o investimento direto do governo na cultura.

A gratuidade: quando estabelece até 40% de gratuidade, cria um problema gravíssimo de precificação, daí mostra que o governo não vê a cultura como uma atividade econômica. Como vai dar 40% de ingressos gratuitos, uns 10 a 15% ao patrocinador, uns 5% para divulgação? Que sobre para o produtor comercializar 40% dos ingressos, mas tem a meia entrada e a proliferação das falsificações de carteira de estudante. Como comercializar essa produção? Quando o governo aumenta essa gratuidade, não reconhece o viés econômico da cultura, que é uma das áreas que menos recebe benefício fiscal. Em 2018, apenas 0,5% foi concedido para cultura.

A indústria automotiva, a agricultura e o comércio recebem muitos benefícios e isso é ótimo. Mas não dá a ninguém o direito de comprar um carro pela metade do preço ou algum benefício especial. Quando se tira esse tipo de discussão da cultura, no fundo, reforça a ideia que não se percebe a questão econômica. Finalmente, quanto às ações educativas, já eram previstas na Rouanet, mas para centros culturais, museus e grandes eventos. E faziam muito bem. Quem frequenta museus sabe que eles têm equipes educativas muito atuantes. Como uma apresentação musical de um dia numa cidade vai ter isso? Falta visão do governo de conversar com produtores culturais para entender a própria dinâmica produtiva”.

Consequências das mudanças
“Como eu acho que as mudanças na lei são mais brandas do que a forma como foram anunciadas, acho que a gente não vai ter tanta alteração na dinâmica produtiva. Voltando a dizer, foram apenas 150 projetos que captaram acima de R$ 1 milhão. Desses, a maior parte vai poder continuar a captar, porque são museus, óperas e atividades populares. No fundo, a mudança recai quase que exclusivamente sobre o teatro musical. Essas produtoras que vinham fazendo um bom trabalho nos últimos dez anos, elas sim vão ter que mudar seus modelos de negócio.

Acredito que duas mudanças vão ser conduzidas por essas empresas: uma, elas vão reduzir as temporadas das apresentações para poder captar mais ao longo do ano. Se faço duas produções ao longo de um ano com duração de seis meses, eventualmente, vou agora fazer quatro, cinco, seis, oito ao longo de um ano, com dois meses talvez, aí faço uma no Rio de Janeiro, uma em São Paulo, em outra cidade e vou buscar amortizar o investimento inicial por temporadas menores em outros lugares. A outra solução que elas podem adotar, como falei, é talvez investir em ter seus próprios teatros e palcos e desenvolver planos anuais e plurianuais e aí captar recurso de outra forma, acima de R$ 1 milhão. Isso gera a possibilidade de as marcas se associarem mais aos equipamentos do que propriamente às produções.

Mas fora o teatro musical, as outras atividades vão poder continuar captando da mesma maneira. Os centros culturais, os museus, as artes visuais não foram afetadas dramaticamente pela mudança da lei. A outra mudança, que citei anteriormente, é quanto ao preço do ingresso. Isso vai ter algum movimento de ajuste. O preço cheio do ingresso vai subir, porque se temos de dar 40% de ingressos gratuitos, mais meia entrada, mais divulgação, mais patrocinador, é uma conta relativamente rápida de se fazer que o preço do ingresso cheio vai subir, para tentar compensar o aumento das gratuidades.

Diria que são basicamente essas mudanças e, em termos estruturais, o que me preocupa é, talvez, nesse primeiro momento, eu perceber que houve um esvaziamento do reconhecimento da cultura como uma atividade econômica muito importante para o Brasil, o que é uma pena, porque em diversos outros lugares do mundo, nos Estados Unidos, na Europa, Chile, Argentina, você tem atividades culturais que são reconhecidas como atividades econômicas importantes para o desenvolvimento do País. E aqui o governo parece ter um olhar mais direcionado para a cultura nessa dimensão puramente do valor simbólico, identitário e educativo, que é importante, mas um certo empobrecimento de visão sobre as políticas culturais”.

*Crédito da foto no topo: Apresentação gratuita da Bachiana Filarmônica, com participações de Iza e Diogo Nogueira, no Parque do Ibirapuera (Adilson Silva / FotoPerigo)

 

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