“Algumas empresas têm D&I lideradas por pessoas com vieses”
Pri Bertucci, CEO da [Diversity BBox], atua há mais de uma década com os temas justiça social, inclusão e diversidade; a consultoria acaba de lançar cursos em EAD
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Roseani Rocha
12 de junho de 2020 - 6h00
No próximo domingo seria o dia em que aconteceria, na avenida Paulista, a maior parada do orgulho LGBTQIAP+ do País. Como outros tantos eventos, também este foi cancelado pela pandemia do novo coronavírus. Se as paradas são momentos em que a visibilidade a essas pessoas tem seu auge, muito existe a ser feito no dia a dia, inclusive, no que diz respeito à sua aceitação no ambiente de trabalho e, além disso, possibilidade de ascensão profissional. Para que a coisa comece acontecer, ou evolua, nos últimos anos têm surgido empresas como a consultoria [Diversity BBox], uma das poucas empresas que têm um CEO trans no País, Pri Bertucci, artista social que fundou em 2009 o projeto de justiça social [SSEX BBOX]. Para seguir e ampliar seu trabalho, inclusive em tempos de isolamento social, a [Diversity BBox] está lançando cursos em EAD. Na entrevista a seguir, Pri analisa o status da inclusão no Brasil, o papel das marcas (inclusive em sua comunicação) e os riscos que correm ao assumir algumas bandeiras apenas superficialmente.
Meio & Mensagem – Estamos na semana em que ocorria a Parada do Orgulho LGBTQIAP+ em várias cidades, um movimento que mobilizava milhares de pessoas e tomava ruas importantes por quase um dia todo. Essa reunião física das pessoas em si já era um alerta à sua existência, suas causas. Perde-se muito com a pandemia, nesse sentido, já que o evento físico não acontecerá? É possível compensar de alguma forma?
Pri Bertucci – Primeiro, é importante lembrar que no mês do Orgulho LGBT a gente comemora não só a Parada do Orgulho LGBT, mas também a Caminhada Lésbica e Bissexual e a Marcha do Orgulho Trans da cidade de São Paulo. É importante que a imprensa, os diferentes tipos de mídias e a própria comunidade entenda que as demandas desse acrônimo L G B T Q I A P + são bem diferentes, entendendo as prioridades de cada letra que reivindicam diferentes políticas públicas. Por exemplo, as demandas por políticas públicas da população Trans são bem diferentes do que as das pessoas bissexuais, gays e lésbicas. O T é uma das letras mais apagadas e invisibilizadas. Acredito que as ações online que vêm acontecendo e tomando espaço – como bate papos em lives cruzadas e shows online (as conhecidas “lives”) – têm sido uma saída. Tanto que a equipe de organização da Parada do Orgulho já tem programado para fazer no próximo domingo, 14/06, uma versão online da Parada, como nós, da Marcha do Orgulho Trans programamos para fazer no sábado, dia 20/06. E a nossa pauta deste ano é fazer uma Marcha do Orgulho Trans com um line-up composto totalmente por pessoas negras e pessoas não-brancas, justamente pelas questões que estão acontecendo no mundo inteiro e também em homenagem ao nosso dançarino da Marcha do Orgulho Trans, Demetrio Campos, um homem trans que tirou a própria vida no dia 17 de maio, por conta desses apagamentos das identidades trans somados ainda às questões raciais. A questão racial é uma ferida antiga que a gente precisa dar muita atenção – não podemos falar de diversidade sem falar de questões raciais. A compensação vem no momento que, ao encarar o despertar desses processos que estamos enfrentando com a pandemia e com esse cenário político no mundo, as pessoas que possuem mais privilégios podem ceder parte de seus privilégios e visibilidades para pessoas que têm as suas vozes silenciadas e apagadas. Então, seria um convite para que pessoas cisgêneras e pessoas brancas possam contribuir com a divulgação desses eventos, principalmente da Marcha do Orgulho Trans, pra darmos visibilidade a coisas que são tão urgentes. No momento pós-Covid, pretendemos ainda conversar em lives sobre uma economia solidária, uma economia do futuro para corpos transvestigêneres – essa é uma das pautas, inclusive, que vamos conversar no sábado 20/06 durante a Marcha do Orgulho Trans Online.
M&M – Que perfil de empresa tem sido mais aderente à consultoria de vocês? Sente que é algo com desejo legítimo de mudança, que permanece e frutifica dentro das companhias, ou adotado eventualmente para cumprir alguma meta interna (ou de uma matriz, no caso de multinacionais) e depois vai enfraquecendo no dia a dia da empresa?
Pri – Na [Diversity BBox] Consultoria trabalhamos com todo tipo de empresa e instituições desde a indústria química, empresas de tecnologia, até empresas de produtos e serviços e veículos de comunicação. Incluindo alguns órgãos do Estado, como prefeituras e Ouvidoria e Defensoria Pública. Mas percebemos que no último ano houve uma mudança significativa no mercado de inclusão de diversidade em empresas no Brasil, um certo sucateamento desse mercado de quem trabalha com consultoria de Diversidade e Inclusão. Com isso, muitas pessoas e empresas surgiram com oportunismo e não com o comprometimento de uma verdadeira mudança social. Algumas empresas têm suas ações de D&I lideradas por pessoas com muitos vieses inconscientes que estão preocupadas apenas com sua própria carreira, mostrando serviço pro chefe e, conseguintemente, este chefe mostrando serviço para as matrizes – sejam elas dentro ou fora do Brasil – que possuem um trabalho de diversidade sendo feito. A gente tem realmente um problema que ninguém quer tocar no assunto, mas é preciso tocar e é preciso entender quais são as empresas sérias que oferecem conteúdo de diversidade e inclusão, para poder fazer um trabalho de educação desse grupo de líderes de suas respectivas empresas. Assim, podemos conquistar um trabalho efetivo, que afete realmente a comunidade; que saia do discurso e entre nas ações afirmativas e na ação prática.
M&M – O que seria essa “inclusão tóxica” que as empresas correm risco de fazer?
Pri – Ótima pergunta. A “inclusão tóxica” é também o que chamamos de “Diversity Washing” – é fazer o trabalho da inclusão preguiçoso, “toquenizando” pessoas dos grupos minorizados, e não fazendo esforço para uma mudança e equidade com foco em processos de reparações sistêmicas. Na maioria das vezes, as empresas demonstram um apetite por esta versão da inclusão “- veja, convidamos uma trans para a mesa de debate ou pro nosso time – somos inclusivos”. Eu prefiro insistir em uma visão mais radical do envolvimento da comunidade que tem a experiência vivida. Pessoas minorizadas ainda não sentiram mudanças nas estruturas organizacionais, onde no topo e em posições de tomada de decisão ainda estão em sua grande maioria homens, brancos e cisgêneros. Já há quase uma década trabalhamos com treinamentos sobre diversidade em instituições públicas e privadas, pois acreditamos na construção de um processo de mudança e crescimento que está enraizado não só no propósito empresarial, mas na voz da comunidade principalmente. Nós somos parte dessa comunidade LGBTQIAP+ e eu, como pessoa Trans, não-branca e líder, tenho isso como compromisso.
M&M – Quantas pessoas normalmente vocês conseguem atingir com seus serviços de consultoria e qual é a expectativa de público para EAD?
Pri – Em média, por ano, conseguimos sensibilizar e treinar cerca de 1.200 pessoas, funcionáries e Stakeholder com reuniões presenciais. Agora, com EAD, acreditamos que seja possível mais que dobrar esse número, com valores muito mais acessíveis, já que empresas sempre buscam por valores mais baixos como investimento. O EAD também facilita o acesso da informação sem perder a qualidade do conteúdo em sua maioria – existe alguma perda pois a interação ao vivo é muito mais profunda, não é incomum, por exemplo, pessoas se emocionarem em nossos workshops e sensibilizações.
M&M – Como organizou os conteúdos do curso? Qual a estrutura?
Pri – Usamos metodologias próprias e os conteúdos mais atualizados. Como o mundo está evoluindo a todo momento com pautas de Diversidade e Equidade, a linguagem está também em constante mudança. A inspiração da organização vem de minhas experiências fora do Brasil especialmente da Bay Area, na Califórnia. Devo esse conhecimento a convivências e trocas com minhas mentoras como Carol Queen, Dossiê Easton e Annie Sprinkle, e mentores como Fresh! White, referências no mundo sobre gênero e sexualidade. Acredito que elas foram o maior suporte para o [SSEX BBOX] como instituição seguir por longos 10 anos sempre atualizado e com uma excelência de conteúdo.
M&M – Citaria algum exemplo de empresa brasileira que trabalhe bem essa questão da diversidade e inclusão? E o que justificaria esse (s) exemplo (s)?
Pri – A Braskem, um dos nossos clientes, é um bom exemplo de um trabalho consolidado e maduro. Está sempre se aperfeiçoando e buscando se atualizar, com o trabalho desenvolvido por Debora Gepp, que está à frente da liderança de Diversidade da empresa, mulher e lésbica. A Dow (Dow Chemical Company) e a Mattos Filho Advogados também fazem trabalhos bem maduros e com muita responsabilidade. O que essas empresas têm em comum? Saber que D&I é um processo que demanda um comprometimento contínuo. Não adianta só fazer a semana da diversidade ou uma palestra por ano no mês do orgulho, pois os resultados acabam não sendo satisfatórios, as pessoas acabam esquecendo o assunto e voltam para suas vidas cometendo os mesmos erros dos vieses inconscientes. O trabalho contínuo permite transformar a negação em abertura, a culpa em responsabilidade, para podermos evoluir para um processo de reparação. Pontuo também a importância do trabalho voltado para agências de comunicação para que muitas não escorreguem em erros ao tentarem desenvolver alguma campanha de diversidade. Um ato falho pode comprometer a imagem de uma empresa e gerar uma grande crise de PR.
M&M – Temos eventualmente no mercado debates sobre o fato de o Brasil ter um número muito reduzido de mulheres em cargos como o de CEO, assim como negros. E me parece que a luta pela ascensão profissional de pessoas LGBTQIAP+ também vai nessa linha. É algo muito difícil mesmo, ainda são muitos os tabus e preconceitos a serem derrubados?
Pri – Sim, evidentemente a população LGBTQIAP+ precisa de inclusão e equidade no mercado de trabalho, mas precisamos de um olhar crítico para esse acrônimo ou a chamada “sopa de letrinhas”. Não somos todos iguais dentro desse guarda-chuva e temos acessos e privilégios dependendo dos marcadores sociais interseccionais. Por exemplo: é sabido que homens brancos, cisgêneros e heterossexuais têm mais acesso e privilégios que lhe são concedidos automaticamente. Mas também temos homens, brancos e cisgêneros que são gays, bissexuais ou pansexuais ou até mesmo assexuais, que continuam com mais acesso pela sua raça/etnia e pela sua identidade de gênero. Já quando se faz esse recorte para uma pessoa trans e negra bissexual ou heterossexual, temos já um outro nível de acessos sociais por conta da dificuldade de estudos e acessos aos meios. Por isso não podemos misturar todo acrônimo em uma “sopa de letrinhas”, porque existem muitas diferenças no acrônimo e movimento LGBTQIAP+.
M&M – O fato de estarmos – não apenas no Brasil, mas em vários países do mundo – sob uma onda conservadora no comando político atrapalha em especial o desenvolvimento desse debate sobre questões de gênero e sexualidade?
Pri – Sim, absolutamente. Enquanto assistimos o mundo desvelar os absurdos que há séculos vêm sendo tratados como “algo já superado” – como o racismo estrutural, que provocou o olhar para essa ferida social que nunca foi curada, cicatrizada e reparada – fica nítido que algumas pessoas descobriram o gosto pela velha ordem mundial e, simplesmente, não querem abrir mão de seus privilégios raciais, nacionais e de gênero. Vimos casos recentes como o da escritora J.K. Rowlling, autora da série ‘Harry Potter’, que fez um comentário contrário a um artigo de opinião intitulado “Criando um mundo mais igualitário pós-Covid-19 para pessoas que menstruam” – para J.K. Rowling, o termo ‘mulheres’ deveria ter sido usado, apontando uma visão completamente equivocada da escritora que iguala feminilidade à menstruação – sendo que há muitos homens trans que menstruam, e muitas mulheres trans que não. No Brasil os níveis de atrocidades e desrespeitos cometidos em relação às vidas de pessoas Trans também já passou dos limites. Supremacistas de gênero decidem quais vidas valem mais a pena e quais vidas não valem nem o direito de ser quem se é. Como indica este tipo de proposta: “PL Emenda: Determina que tanto o “sexo biológico” como as características sexuais primárias e cromossômicas definem o gênero do indivíduo no Brasil”. A reflexão que gostaria de estimular é: você que se diz pessoa aliada da causa Trans, está fazendo o quê? E você, empresa aliada, está fazendo o quê? Como ajudar? Como empresas podem ajudar? Vamos conversar? Apoiar a causa Trans é também apoiar para que continuemos vives.
(*) Crédito da imagem no topo: Latinstock / Paulo Liebert / Corbis
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