Carrefour: impacto além do valor das ações
Depois de iniciar semana com queda no valor das ações, companhia anuncia fundo de R$ 25 milhões para ajudar no combate ao racismo estrutural
Depois de iniciar semana com queda no valor das ações, companhia anuncia fundo de R$ 25 milhões para ajudar no combate ao racismo estrutural
Roseani Rocha
24 de novembro de 2020 - 6h00
Quando a B3 encerrou seu pregão nessa segunda-feira, 23, as ações do Carrefour registraram a maior queda no mercado – de 5,35% – movimento diferente daquele ocorrido na 6ª-feira, 20, um dia após ter ocorrido o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, por dois seguranças de uma loja do Carrefour, na zona norte de Porto Alegre. “Parece neste momento que os investidores fizeram uma nova análise sobre risco da empresa e precificaram esse risco a partir de hoje”, disse Dario Menezes, diretor da consultoria dinamarquesa Caliber no Brasil, em entrevista ao Meio & Mensagem, ainda na tarde da segunda, mas já com as ações seguindo esse curso de queda.
O professor Henrique Campos Jr, da FGV, acredita que a empresa terá sim impacto em imagem e resultado financeiro num primeiro momento, mas como acionistas tomam decisões menos por movimentos morais e mais para o que interessa a seu bolso – ainda que comecem a repercutir iniciativas de fundos de investimento de apoiarem empresas que sistematicamente tenham bons índices ESG (Enviromental, Social and Governance) – a tendência é que se o Grupo Carrefour souber lidar de forma transparente com as consequências do que aconteceu, provavelmente sofra um impacto temporário no valor de suas ações.
“Gostaria de ser mais otimista, no sentido de que haja consequências e o caso repercuta de maneira profunda, mas nosso histórico é o de que esquecemos muito fácil”, pontua por sua vez Klebs Lucas, gerente de planejamento da consultoria Cause, lembrando que na 6ª-feira, 20, as ações do Carrefour chegaram a fechar em alta e seu Índice ESG não havia caído. Já sobre o efeito na segunda-feira, ele diz não saber se houve de fato “um despertar” para a gravidade do assunto ou uma reação por pressão da sociedade no calor do momento.
Nenhum dos três especialistas ouvidos minimiza a responsabilidade do Carrefour, mas todos também ressaltam que o acontecido está num cenário mais amplo e problemático do Brasil; o executivo da Cause, por exemplo, acredita que poderia ter acontecido em qualquer rede de supermercado. Jaime Troiano, da Troiano Branding, que por ter o Carrefour como cliente, se restringe a comentar esse panorama mais abrangente, diz que seu ponto de partida é o de que vivemos numa fase “de um profundo mal-estar com nosso capitalismo e a forma ainda pouco cuidadosa como é conduzido”. Com isso, faz uma crítica ao fato de governança, em muitos lugares, incluindo o Brasil, ser um assunto ainda muito fechado no board das empresas e não chegar a todas as instâncias. “Existe muita retórica e pouca prática. O que está em jogo e o Carrefour é um triste episódio de um processo maior é esse enorme mal-estar de coisas ainda retóricas, como ESG, que ainda não aterrissaram por aqui, de fato”, afirma Troiano. Ele, que é formado em Engenharia, mas também em Sociologia, pela USP, ressalta que estudos, neste último curso, que davam um mapa do que era o Brasil, na década de 1970, ainda são praticamente os mesmos: racismo estrutural, desigualdade social e o consumidor ser “suportado”, sendo que tudo isso leva a episódios trágicos que nenhuma comunicação será capaz de resolver.
Menezes, da Caliber, ressalta que falar de reputação de uma empresa é acima de tudo falar de competitividade nos negócios, de aceitação de seus diversos públicos e da maneira como a companhia conduz seu business, o que se refletirá nas atitudes desses públicos para com a empresa. Assim, para ele, o caso em questão afeta a competitividade do Carrefour, pois ao contrário da Vale, que vende minério de ferro em contratos de longo prazo, para vários países, o Carrefour depende das atitudes de seus públicos de querer comprar ou não em suas lojas diariamente. “Os consumidores estarão mais suscetíveis a não querer comprar no curto prazo e isso traz um impacto direto”, diz, acrescentando que o caso ainda faz emergir outras questões: como a liderança é percebida, se está orientada à construção de valor de longo prazo no mercado, e sua imagem como empregadora direta ou de mão de obra terceirizada, e como faz sua gestão.
A questão da reincidência de casos de violência em dependências da rede, diz, também é uma questão de reputação. E fere sua competitividade porque concorrentes que pelos próximos dias simplesmente exaltem seus valores e não tenham episódios como este no histórico, já terão uma vantagem competitiva. Para Dario Menezes, a mensagem do Carrefour na TV com o CEO Noël Prioux e o vice-presidente de recursos humanos do Grupo Carrefour, João Senise, não transmitiu empatia suficiente com o contexto social brasileiro. “A questão central é entender o Brasil e os brasileiros. Pareceu uma empresa com visão de outsider e não de alguém que precisa ter empatia com problemas e dilemas locais. Isso é fundamental para construir reputação e confiança, ou seja, fazer parte do contexto e ajudar a melhorá-lo, e isso independe da nacionalidade do CEO”, acrescentou o executivo da Caliber.
Klebs, da Cause, descreve como sofrível o comunicado inicial do grupo, que responsabilizava o terceiro (a Vector, empresa de segurança) e pedia desculpas, mas considerou a resposta com o CEO “mais estruturada” e admitindo a necessidade de ações concretas. Como ele, Henrique Campos Jr., da FGV, acredita que a rede de varejo alimentar seguiu a cartilha da gestão de crise, colocando somente as lideranças como porta-vozes, prometendo apuração dos fatos e assumindo responsabilidade de apoiar a família e as investigações. Por outro lado, acredita que o episódio deixa claro haver um problema de gestão no âmbito das lojas, quando uma brutalidade como essa ocorre sob as vistas de 15 funcionários e ninguém é designado a apertar “o botão de pânico”, ou seja, de ter autonomia para evitar que ocorresse a escalada de violência. Para ele, embora seja óbvio o racismo estrutural no Brasil, confirmado pela frieza dos números, ano após ano, por mais que o governo tente negá-lo atualmente, a repercussão da morte de João Alberto foi catalisada, como crime motivado por racismo, pela ocorrência na véspera do Dia da Consciência Negra. Além disso, o momento de polarização forte, tem levado cada vez mais pessoas às vias de fato, por motivos torpes. “Existe uma doença social que precisa ser tratada, com educação e por governos, empresas, entidades que dão suporte a essa estrutura social existente”, analisa.Do ponto de vista organizacional, acredita Henrique, é um lixamento público, que tem muito a ver com reincidência, mas não reflete exatamente o que a empresa tem feito historicamente. E essa reincidência também poderia estar ligada ao próprio crescimento da rede no País, onde ela tomou decisões acertadas que levaram a sua expansão em e-commerce, depois, na organização de sua estrutura física em atacarejo, super e hipermercados e novos formatos de lojas de bairro. Mas ele mesmo ressalta que essa dimensão, que torna a empresa mais suscetível a problemas, é um fator de alerta e não uma desculpa, por isso o grupo terá de sofrer as consequências por algum tempo e se engajar fortemente em iniciativas de compliance.
O executivo da Cause, que é negro, também destaca o problema do racismo estrutural no País e o papel que também o poder público tem a respeito, por exemplo, quando reduz o investimento em ações sociais afirmativas. No âmbito privado e corporativo, ele alerta ao fato de que as empresas precisam ter visão de longo prazo para o assunto, com planejamento, um rh com conhecimento técnico e envolvimento da alta gestão para mudar esse cenário. “Se o CEO não entender que é importante, não vai resolver. E é preciso dar espaço e voz para grupos minorizados nas empresas”, defende Klebs Lucas.
Carrefour é retirado de grupo antirracista
Fora do Carrefour, ele cita como exemplos positivos – e que deveriam se ampliar e ser seguidos para começarmos a desestruturar esse racismo estrutural – iniciativas como os processos de contratação de profissionais negros nas seleções de trainee, para fazê-los chegar a cargos de liderança, como fez recentemente o Magalu, os investimentos financeiros com foco nessa questão social, como faz o pioneiro Fundo Baobá, no Brasil, e, por fim, a articulação entre empresas, pois “não existem concorrentes em causas importantes para a sociedade”, pontua.
Aparentemente, as iniciativas mais práticas – no Carrefour – já começaram. Ainda na noite da segunda-feira, 23, o grupo anunciou a criação de um fundo que inicialmente terá o aporte de R$ 25 milhões – valor é adicional à doação anunciada pela empresa, de reverter todo o resultado das vendas realizadas em todos os hipermercados da rede, em território nacional, no dia 20 de novembro – para lutar pelo combate ao racismo estrutural no País e promover ações afirmativas para a inclusão social e econômica de negros e negras na sociedade.
A empresa afirmou que vem se reunindo com entidades representativas da causa e com especialistas que atuam nessa frente, visando “compreender e aprender sobre como atuar de forma concreta na luta contra todo e qualquer tipo de discriminação, que inclui também outros públicos minorizados”. A partir desse trabalho, prometeu anunciar, nesta quarta-feira, 25, os compromissos e o plano de ação para o fundo, em iniciativas que abrangerão ações internas junto a seus milhares de colaboradores e projetos com públicos no âmbito externo.
(*) Crédito da imagem no topo: Mariana-Mikhailova-iStock
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