Por que a propriedade intelectual pode virar arma de guerra
Alterações à proteção de marcas na Rússia, como o caso que envolve o McDonald’s, pode abrir precedentes em relação aos acordos internacionais de proteção
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Bárbara Sacchitiello
24 de março de 2022 - 6h00
Nesta quinta-feira, 24, a guerra entre Rússia e Ucrânia completa um mês, gerando consequências políticas e econômicas no leste europeu e em todo o mundo. Como forma de repudiar os ataques da Rússia – e de pressionar o país liderado por Vladimir Putin a interromper a ofensiva militar – países do Ocidente iniciaram a aplicação de uma série de sanções econômicas à Rússia, entre elas a exclusão dos bancos do país do sistema Swift, plataforma internacional que permite a troca de informações padronizadas e transações entre bancos de todo o mundo.
Como forma de demonstrar seu repúdio à invasão na Ucrânia, grandes empresas multinacionais iniciaram uma debandada da Rússia, interrompendo as atividades no país e suspendendo a atuação no território. As grandes holdings de comunicação do mundo – Publicis Groupe, WPP, Interpublic, Omnicom e Dentsu – decidiram fechar seus escritórios na Rússia ou transferir o comando das operações para empresários locais. E anunciantes como McDonald’s, Ford, Coca-Cola, PepsiCo, Spotify, Ikea, Apple e Shell, também interromperam suas operações no território.
Essas sanções, consequentemente, acabaram provocando reações do governo russo. E uma delas pode abrir precedentes para mudanças nas regras internacionais em torno de propriedade intelectual e dos direitos de marcas.
Há alguns dias, o advogado Josh Gerben, especializado em direitos de marcas, postou em seu perfil no Twitter a imagem de um documento que registrava a aprovação de um pedido de registro intelectual de uma marca. A empresa, que tem o nome de Uncle Vanya, chamou a atenção por ter um logo praticamente igual ao do McDonald’s (com a letra “B”, do alfabeto cirílico, como se fosse o tradicional “M”, virado de lado).
O departamento russo responsável pelo registro aprovou a utilização daquela marca o que, na prática, significa ir contra às regras internacionais de proteção á propriedade intelectual e registro de patentes. O Ministério da Economia e Desenvolvimento do país chegou a declarar que consideraria as restrições de marcas que tivessem deixado à Rússia ou que fossem aliadas de países considerados inimigos.
Como funciona o registro de marcas no mundo?
Os 164 países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) são signatários do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs), que cria a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI). Em linhas gerais, os signatários deste acordo devem seguir a mesma legislação de propriedade intelectual, como explica Gustavo Cesário, sócio da K+G Cesário Pareceres e Pesquisas em Propriedade Intelectual e professor da ESPM e da UniCarioca.
O que a Rússia está propondo, segundo o especialista, é romper esse acordo ao permitir que terceiros assumem a propriedade das marcas das empresas multinacionais que estão deixando o país, ainda que de forma temporária. Ao autorizar um registro de marca praticamente igual ao do McDonald’s, o governo russo permitiria que uma empresa local utilize os espaços das lojas, a identidade visual e todas as propriedades intelectual da empresa da Arcos Dourados. “Em uma situação normal, o órgão marcário russo, equivalente ao nosso INPI, indeferiria o pedido [de registro da rede Uncle’s Vanya] sem nem consultar o McDonald’s. A partir do momento em que a Rússia muda sua posição quanto ao direito marcário, isto pode mudar completamente e marcas como essa passarão a ser registradas em diferentes segmentos do mercado”.
Riscos para as empresas
Cesário diz que o sistema de proteção da propriedade intelectual é um símbolo do capitalismo e que quebrar um acordo tão importante ao livre comércio é, claramente, uma forma de retaliar o sistema americano. “Isso quebra um acordo vigente há quase 30 anos, o que pode e deverá ter um impacto significativo em todo o mundo, pois abre precedente para outros países fazerem o mesmo, colocando em xeque o sistema de Propriedade Intelectual que ordena o comércio nos países membros da OMC”, frisa.
O professor destaca, ainda que o TRIPs foi assinado por pressão dos Estados Unidos e membros da União Europeia e que o acordo não é do interesse de todos os países. “O que a Rússia está propondo abre precedentes para que países que se sentirem desfavorecidos nos acordos internacionais também façam o mesmo, rompendo com este acordo e implodindo todo o sistema de proteção de marcas e também de patentes vigentes do mundo moderno”, conclui.
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