Minhas férias: Uma redação, algumas anotações
Férias dignificam o homem, redimensionam o que realmente importa, colocam alguns problemas na distância certa e abrem espaço para não cumprir papel algum
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Lembra quando você voltava para a sala de aula e tinha que fazer aquela redação “Minhas férias”? Na época, achava uma chatice sem fim aquilo. Parecia um jeito muito entediante de resumir o que foi incrível. Hoje, tenho vontade de voltar no tempo e falar com a Filomena, a Tia Filó: olha, obrigado por me fazer relembrar e escrever sobre as coisas boas dos meses de verão em Copacabana. Uma prancha Planonda, ondas buraco, areia no cabelo, a água do chuveiro, e lembrar as assaduras na barriga, um pão doce colegial.
Escrevo esse artigo no fim das férias e confirmo que a minha dificuldade para desligar do trabalho é mínima. Eu entro no avião e, quando ele pousa, meu pensamento já está longe. Por muito tempo, falei dessa peculiaridade quase como se estivesse em um confessionário: desculpa, mas falhei na tentativa de acreditar que só o trabalho enobrece o homem.
Sinto por essa lacuna na formação do meu caráter empreendedor, mas, a verdade, é que gosto e valorizo muito o ato de sair de férias. Estou prevaricando? Há algo de errado com o sentimento de vagabundagem que me acomete repentinamente? Deveria ter pedido desculpas aos meus colegas quando cruzei a porta na sexta? Um discurso, quem sabe? Amigos, sinto deixá-los, mas é com dor no coração que parto para uma folga prolongada.
Não, não me olhem como se eu fosse um bastardo. Eu tentei, mas o RH, esse desalmado, negou. Fui praticamente jogado para fora. Por mim, ficaria nas trincheiras de jobs com vocês, mas viajar se faz necessário. E com lágrimas nos olhos partiria como o Bruce Banner ao fim dos episódios da antiga série do Hulk. Sobe musiquinha triste.
Vai me dizer que você nunca saiu de férias achando que estava devendo algo? Que era um acinte? Ou que nunca ficou até mais tarde sem ter nada o que fazer só porque o seu chefe ainda estava ali? Ou pior: porque rolava um boato que às vezes ligam de madrugada para fazer uma contagem de quantas pessoas estão na labuta? Contagem feita, é claro, de um colchão quentinho. No mercado publicitário, diversas lendas são criadas com base em uma devoção hercúlea. Ah, fulano virou tantas noites em uma gráfica. É um paladino do detalhe. E aquele ali, está vendo? Aquele chama reflexo no monitor de espelho, espelho meu.
Muitas dessas fábulas são apenas personagens construídos na arte de se fazer cansado na hora certa. São videocases de si mesmo, com números inflacionados. E assim vangloria-se o postador da madrugada, o .
As férias dignificam o homem. Elas redimensionam o que realmente importa, colocam alguns problemas na distância certa, abrem espaço para não cumprir papel algum. Nessa última viagem, aprendi com a minha família a cerrar as algemas do “você tem que ver isso em tal cidade”, “você não pode deixar de ir nesse restaurante”. Viajo sem ter que nada. Viajo porque as pessoas mais chatas que conheci só são felizes no trabalho.
Anotações aleatórias das férias:
• Publicado em 1938, Address Unknown, da americana Kathrine Kressmann Taylor, aborda uma troca de cartas entre dois amigos durante a Segunda Guerra Mundial. Em um momento em que a ex- trem-direita cresce, é uma leitura fundamental que nos lembra que o medo do outro, o ódio vende rápido.
• O livro foi publicado sem o primeiro nome da autora. Era um tema forte demais para ser assinado por uma mulher, segundo o editor. Corta. Em 2017, ainda tem gente discutindo se o personagem principal de Dr. Who pode ser uma mulher ou não.
• E eis que a maior inovação de Cannes foi uma estátua. Artigo que saiu no Advertising Age que eu adoraria ter escrito.
• A parte mais simples de imitar o Steve Jobs é ser carrasco com a equipe. Para isso, não precisa ser gênio, basta ser idiota.
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