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Os clichês de uma demissão

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Opinião

Os clichês de uma demissão

O bom ou o ruim da maturidade é que você vira meio mãe Dinah: percebe os movimentos, decifra os códigos, prevê as jogadas do inimigo


2 de agosto de 2017 - 9h30

1º Ato / A Moça do RH – Estou eu sentadinha em minha mesa, já me preparando para sair e almoçar, quando ouço passos de gazela. Era a moça do RH, que vinha meio saltitante na minha direção, com aquele sorriso de “Monalisa”. Ela arqueia a sobrancelha para dar um ar mais dramático à cena e profere a sentença: você está sendo chamada na Diretoria.

Foto: Reprodução

2º Ato / Os meus pensamentos nesta fração de segundos – Obviamente que eu já sabia o que me esperava, pois o bom ou o ruim da maturidade é que você vira meio mãe Dinah. Percebe os movimentos, decifra os códigos, prevê as jogadas do inimigo, mas só não pode gritar “Truco, ladrão”, porque aprende que rezar o mantra “dia 15 e dia 30” ainda é mais prudente. Foco sempre no cachê. Vamos lá ouvir o discurso.

3º Ato / A Diretoria – Lá está sentada a pessoa da diretoria que vai dar a notícia. É incrível como sempre tem um coitado que precisa fazer o trabalho sujo. Me lembrei de uma cena do filme em que o George Clooney demitia todo o mundo e uma das moças demitidas ameaça se jogar de uma ponte próxima à casa dela. E não é que ela se jogou mesmo? Tudo pode acontecer nestes momentos tensos. Há de se ter todo o cuidado…

A pessoa se ajeita na cadeira, começa a falar e eu só consigo ouvir: “blá, blá, blá, whiskas sachê”… Não presto muita atenção no que está sendo dito, porque a minha cabeça subitamente se transforma em uma máquina calculadora: faculdade do filho + IPTU + condomínio + pla- no de saúde + luz +…. ferrou… De repente, uma voz dentro de mim grita no meu ouvido: “pare de pensar nisso tudo agora sua louca, antes que você realmente tenha ímpetos de se jogar no Rio Pinheiros”. Volto a escutar o discurso e bem neste momento alguma pérola é proferida, o que me faz achar os números mais excitantes. Penso que talvez devesse dizer algo, ao menos gesticular, afinal a minha atuação estava pior do que a do Cigano Igor. Mas motivos da minha demissão eram tão surreais, que não valiam uma encenação mais nobre. Assim que a minha cabeça foi devidamente degolada, todos saíram de cena.

4º Ato / Retirando os pertences – Coloco tudo que era meu em uma caixa, exceto a minha plantinha e ao mesmo tempo eu lembro da cena do filme Beleza Americana em que o Kevin Spacey sai da agência em êxtase carregando seus pertences. Então eu sou interrompida pela voz aguda da moça do RH que me apressa para ir ao TI. Para disfarçar, ela faz uma cara de compaixão com o mesmo brilhantismo de uma atriz da Malhação.

5º Ato / O cara do TI – Um entra e sai de gente e apesar de tudo eu estava absolutamente à vontade naquele lugar, pois o cara do TI não precisava fazer caras e bocas, nem fingir solidariedade. Ele só precisava ser o Cara do TI: pegar a minha máquina, o celular e se livrar logo de mim para atender outro chamado. Eu também estava louca para me livrar de tudo e chegar em casa a tempo de assistir a reprise de Senhora do Destino. A Nazaré Tedesco sempre foi a minha vilã favorita.

6º Ato / Os colegas de trabalho – Procuro sair sorrateiramente, mas acabo encontrando os colegas que a essa altura já sabiam de tudo. A rádio peão é muito mais eficaz do que qualquer mídia programática. Como era de se esperar, todos falam as mesmas coisas: “estou chocado, logo você, tão dedicada, tão boa profissional” e, na sequência, emendam com as frases mais clichês de incentivo: “Há males que vem para bem”. “Deus fecha uma porta e abre duas janelas”. As frases com Deus têm um GRP altíssimo. Fofos. Eles estavam mesmo sendo solidários.

7º Ato / Aqueles outros “colegas de trabalho” – Estes fingem bem, mas no fundo eles estão pensando: “Bem-feito, sua pentelha que não parava de me cobrar aquele job, aquele plano de mídia, que reclamava do banner, se ferrou, vai ter que voltar pro final da fila e amargar uma longa espera. Com essa crise infernal não vai arrumar nada, vai acabar virando Uber e quando isso acontecer eu vou estar no banco de trás e pedir para você me levar pra Vila Caju”.

8º Ato / Game over, restart – Agora é começar de novo, não tem jeito. Sei que vou ligar para um monte de gente, ouvir dezenas de vezes que o Brasil está em crise e que ninguém está contratando. Sei que vai ter gente que não vai me retornar, que nem vai ler meu e-mail, e terão outras que dirão o clássico: “deixa comigo, você vai ficar no meu radar”. Aliás, quem inventou essa frase mesmo?

Esse é o roteiro mais manjado e no momento que você pensa que não há mais chances, de repente aparece algo para alterar o final do filme. Como diria o Ariano Suassuna: “O otimista é um tolo. O pessimista, um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso”. Penso como ele. E acredito que dias melhores virão.

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