30 de julho de 2019 - 18h25
(Crédito: Sharon McCutcheon/Pexels)
Em artigo publicado no último dia 24 de julho, intitulado “Um caminho para a comunicação destinada às crianças” foi afirmado que seria um erro – ou até mesmo fake news –, a afirmação de que a publicidade infantil é proibida no país, concluindo que “apesar das sutilezas, é possível fazer publicidade infantil com cuidado e de forma responsável”.
Apesar do longo debate, do grande acúmulo científico e dos avanços em políticas públicas e regulatórias sobre o tema no Brasil e no mundo, é verdadeiramente triste perceber que grupos orientados exclusivamente por interesses comerciais acima de quaisquer outros precisem explorar a vulnerabilidade de uma criança, desrespeitando-a na sua condição sensível de desenvolvimento, para vender seus produtos ou serviços. Acostumados a velhas práticas e agarrando-se ferozmente a premissas de marketing e comunicação comercial ultrapassadas, teimam em defender o indefensável: a publicidade infantil.
Dirigir mensagens comerciais a um público menor de 12 anos de idade é uma prática questionada, regulada, e por vezes proibida, em diversos países – como Suécia, Noruega, Inglaterra, Canadá e Alemanha –, movimento este que o Brasil e suas instituições têm enfrentado com coragem e assertividade na aplicação da lei em múltiplos casos, tanto no Judiciário pela importante atuação do Ministério Público e Defensorias, como no Executivo pela fiscalização pelo Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.
Para os negacionistas da ilegalidade da publicidade infantil, bastaria uma simples leitura da Resolução n. 163 do Conanda, dos artigos 36, 37 e 39 do Código de Defesa do Consumidor, dos dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente e a própria Constituição Federal, especialmente o artigo 227, para se concluir pela sua abusividade e, portanto, proibição. É o que vem sendo reafirmado por inúmeras decisões nos Tribunais de Justiça espalhados pelo Brasil e, paradigmaticamente, pelo Superior Tribunal de Justiça, que nos julgamentos sobre o tema tem reafirmado que direcionar publicidade para crianças é prática considerada contrária às normas nacionais e internacionais.
É injusto se aproveitar da hipervulnerabilidade de uma criança para comercializar alimentos não saudáveis, enlatados ou lanches com brindes. É antiético explorar a ingenuidade infantil e seus universos de fantasia, magia e sonhos para implantar desejos de consumo, transformando crianças em verdadeiras promotoras de vendas em suas famílias. E é ilegal se aproveitar da deficiência de julgamento e experiência dessa população para perpetuar uma prática perversa de exploração da condição humana na infância por ser mais fácil seduzir crianças do que seus pais e mães, os verdadeiros responsáveis e, por isso, os devidos destinatários de mensagens comerciais.
A prática comercial preguiçosa, mas não menos perigosa, da publicidade infantil burla a autoridade familiar e parental, buscando estar em todos os espaços de socialização da criança, da televisão às novas mídias digitais e, até mesmo, dentro das escolas e salas de aula, camufladas de conteúdo “educativo”, mas cujo real intuito nunca pode ser disfarçado: vender um produto ou serviço e influenciar presentes e futuros consumidores de uma marca.
Como se não bastasse todo esse abuso, é notório e endossado por pesquisas renomadas que a publicidade infantil ainda contribui para problemas sociais como a epidemia de obesidade, sobrepeso e doenças crônicas não transmissíveis graças à publicidade de alimentos e bebidas sem valor nutricional, a adultificação e erotização precoce, a violência pela busca de produtos caros, o impacto ambiental pelo consumo inconsciente e aumento da dispersão de plásticos. Sem falar no estresse familiar gerado pelo superendividamento e pelo fomento, desde o berço, de consumidores vorazes e famílias aprisionadas pela sociedade de hiperconsumo e seus valores materialistas.
Importante ressaltar que a publicidade infantil é uma prática defendida por muito poucos e cada vez mais isolados, ainda não sintonizados com o espírito do tempo atual que exige posturas corretas e responsáveis também do setor empresarial. Nesse sentido, grandes empresas atuantes no Brasil, como Coca-Cola, Mars e Mercur foram a público, há muito tempo, para afirmar que não fariam mais publicidade infantil, tanto para cumprir a lei, como também declarando que essa é uma prática que viola padrões mínimos de responsabilidade social no marketing na comunicação comercial.
Assim, em um momento de país que se fala tanto em ética e moralidade públicas, cabe a todos – inclusive a empresas e associações de defesa de interesse econômico ou de classe –, contribuírem para essa tarefa e cumprirem as normas vigentes, pondo um fim derradeiro à publicidade infantil e suas consequências nefastas para a infância brasileira.
É, portanto, irresponsável afirmar por meio de supostos guias – que inclusive confundem conceitos básicos como a diferença de publicidade infantil e a “publicidade responsável de produtos destinados às crianças” –, que exista caminho ético possível “com cuidado e de forma responsável” para persuadir crianças ao consumo de um produto ou serviço.
Por fim, cabe sempre lembrar: a publicidade de qualquer produto continua a existir. O consenso dentre aqueles que se preocupam com a infância é de que toda essa comunicação mercadológica, inclusive de “produtos infantis”, seja redirecionada aos adultos, mais capazes de analisar criticamente mensagens de apelo a consumo e decidir com liberdade por sua aquisição e uso.
Proteger as crianças brasileiras do assédio publicitário, mais do que uma demanda de um novo país, é um dever de todos nós: famílias, Estado, sociedade e das próprias empresas, como bem evidencia o Artigo 227 da Constituição que garante às crianças prioridade absoluta sempre e em qualquer instância, mesmo no marketing e na comunicação comercial. O caminho está traçado, é hora de trilhá-lo.