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Opinião

A era do cancelamento – dá pra cancelar?

Para as marcas, isso pode ser uma grande razão de frio na barriga


2 de dezembro de 2019 - 9h00

(Crédito: Drante/istock)

Vivemos a era do cancelamento. Exatamente por isso, nunca foi tão importante saber dialogar. As pessoas interagem, se expressam, se posicionam de forma simples e natural. As redes sociais são vitrines gratuitas e de rápida gigantesca reverberação — basta digitar e apertar o “post”.

Se, por um lado, para as pessoas isso significa liberdade de expressão, facilidade de expor sua opinião e até um certo risco de “ser cancelado”, para as marcas, isso pode ser uma grande razão de frio na barriga. Mas, nos dias de hoje, nenhuma marca pode viver na sombra, escondida, alheia. É preciso saber dialogar, responder questionamentos e se comportar frente às mais diversas questões relevantes para as pessoas. De uma forma consistente, falando de igual para igual e, principalmente, respeitando todas as crenças, filosofias e expressões. Logo, dá para imaginar o quão difícil é não se deixar paralisar em meio a esse contexto tão complexo, onde está todo mundo ávido por fazer justiça com as próprias teclas.

Por isso, acredito e pratico o ato de posicionar e fazer as marcas trafegarem na velocidade da cultura. Isso significa conhecer o que acontece nas ruas e nos celulares das pessoas e manter o dedo no pulso da cultura moderna porque é o que vai nos deixar mais preparados e tranquilos para dialogar de forma contemporânea e legítima, sem se deixar paralisar pelo receio de ser cancelado.

Já passou o tempo dos PPTs de 300 páginas porque nada dura o tempo sequer de chegar ao último slide. Mas acompanhar a velocidade da cultura não pode significar efemeridade, memória curta, inconsistência. Para a marca, isso representa conhecer e se inserir de forma legítima, todo dia, com consistência e coerência. Conhecer as diferentes expressões de identidade, nas mais diversas comunidades. Conhecer os novos espaços do comportamento humano, ou nem tão novos assim, mas ressignificados, que inspiram e direcionam posicionamentos, causas e conceitos de marca. E conhecer as múltiplas estéticas e os formatos que encantam e mobilizam grandes ou pequenas multidões e que também servem de inspiração e referência para as marcas.

Já passou o tempo de focar em tendências, cuja função para as marcas era serem pioneiras à frente das demais. O negócio, até pouco tempo atrás, era conectar-se à tendência X antes. Hoje, não é mais sobre ser tendência. Porque esses espaços e expressões, seja de identidade, seja de comportamento, seja de estética, não são tendências. Eles acontecem hoje. Tendência aponta para o futuro como se falássemos de algo que ainda “vai pegar”. Hoje, o que importa são os comportamentos-limite, algo que não é massivo, pelo contrário, “desvia” do padrão, da convenção, e não é sobre quantidade, é sobre potência e relevância. Digo comportamento-limite porque é sempre sobre algo marginalizado, que não é óbvio, nem está no centro da discussão, mas que é poderoso, incomoda, provoca. E, principalmente, precisa ser conhecido, considerado e respeitado pelas marcas. O comportamento-limite, muitas vezes, revela verdades inconvenientes que muita gente preferiria manter “debaixo do tapete”. E eles ajudam as marcas a terem esse indicativo, esse termômetro de quais são essas verdades e de como podemos nos relacionar com elas.

Dentre os comportamentos-limite que observo e que dizem respeito à identidade, destaco três:

— A luta pela representatividade e dignidade enfrentada pela comunidade LGBTQIAA+, que inclui todas as formas de expressão que repensam gênero, sexualidade e amor e não se encaixam na hétero-normativa binária homem/ mulher.

— Os “cidadãos invisíveis”, que reúnem minorias de direito, como imigrantes, deficientes, negros, que emergem da exclusão para assumir um lugar legítimo em criar novos valores e novas oportunidades de negócio que acomodam seus desejos e suas necessidades.

— O rural reimaginado, sobre o avanço de áreas e comunidades rurais como pontos focais de desenvolvimento, tecnologia, criatividade e que desloca o protagonismo das grandes cidades. Estão aí o Texas (Austin) e Santa Rita do Sapucaí, brilhando no circuito tecnologia-inovação, e Campinas como a cidade mais inteligente do Brasil.

Marcas que desconhecem esses movimentos identitários e de comunidades estão muito mais suscetíveis a ficarem de fora das conversas. Se o assunto é estética, formato, linguagem, existem alguns comportamentos-limite que são importantes conhecer, acompanhar, entender… Formas de expressão visual são partes fundamentais para as marcas se apresentarem, e, se a cultura moderna nos brinda com o que as pessoas curtem ver, nossa obrigação é ficar de olho!

— A beleza da imperfeição. Se o Instagram e as redes sociais impulsionaram a ode à beleza perfeita e irretocável, a moda, a arte e a mídia trazem o outro lado à tona. A sensibilidade de do it yourself (faça você mesmo) dos memes instituem um novo paradigma de beleza — o feio, o controverso e o irônico é a nova estética cool.

— E se o “feio” (o que é feio? O que é bonito? São conceitos tão relativos — ainda bem!) passa a ser visto com outros olhos e ter seu valor percebido, a cultura do meme estabelece uma nova linguagem universal. A geração Z chega ao mundo do consumo como a primeira genuinamente que não viu o mundo sem a conectividade 24/7 da internet e das redes sociais. Se, para as gerações anteriores, o publicável tem que ser irretocável, a geração Z chega trazendo doses cavalares de realidade, crítica e sarcasmo. E essa estética e linguagem tomam conta do mundo do marketing.

— E já que falamos de geração Z, o culto às referências dos anos 1990 ressurge com força por esse público. Beber na fonte do passado é um movimento cíclico no mundo da estética, prova de que o passado é sempre inspirador e gerador de esperanças de que “o mundo nem sempre foi tão louco assim”.

Seja cultuando o controverso, o sarcástico, ou o passado, as expressões de linguagem estética e formatos que a cultura moderna cria são sempre inspirações e referências para ajudar as marcas a se conectarem com o contemporâneo, respeitando suas essências.

Já entre os comportamentos-limite no comportamento humano de forma mais direta que podem inspirar posicionamentos, causas e conceitos de marca, destaco três movimentos:

— Marcas-cidadãs. Com os níveis de confiança nas instituições cada vez mais baixos, sendo o governo a com maior defasagem, as pessoas delegam à iniciativa privada soluções em infraestrutura, serviços e questões sociais. Ponto para as marcas que já entendem isso e se preocupam em devolver para a sociedade iniciativas que vão muito além das comerciais.

— Em um mundo multi, com excessos de estímulos, obrigações, conteúdos e informações, as pessoas tendem a buscar momentos para fazer nada. E isso impacta o uso consciente de tudo que está demais em nossa vida. Repensar o estímulo ao consumo, em linhas gerais, e, particularmente, em cada segmento de negócio, pode ser uma ousadia bem-vinda para uma marca corajosa.

— E se o assunto é conversação, as celebridades do século 21 são as pessoas comuns que foram alçadas ao patamar de influenciadores digitais. Pessoas viram mídia. Difícil encontrar uma marca que já não tenha como básico se associar a alguns influenciadores. Mas estamos mesmo tirando o melhor desse comportamento-limite de seguir e supervalorizar estilos de vida personificados nesses influenciadores? “Patrocinar” estilos de vida é realmente o caminho?

Esses são apenas alguns exemplos, algumas provocações. A própria cultura do cancelamento é um comportamento-limite que tem avançado as linhas para se tornar padrão. Qualquer um desses comportamentos-limite aqui citados, se não forem bem interpretados e, principalmente, respeitados, traz grande risco de gerar cancelamento da marca. Provavelmente, o verbo mais temido nos dias de hoje.

**Crédito da imagem no topo: Bablab/iStock

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