O perigo da data única
Ao abordarmos apenas uma narrativa e um caminho de vivência, contribuímos para a manutenção de estereótipos
Ao abordarmos apenas uma narrativa e um caminho de vivência, contribuímos para a manutenção de estereótipos
Mais um ano, mais um briefing de 8 de março.
E depois? 28 de junho? 20 de novembro? Com sorte, 29 de agosto.
Os movimentos sociais tiveram que criar datas afirmativas como essas para terem suas urgências ouvidas pelo menos uma vez no ano. E a publicidade entendeu metade da história e começou a retratar esses públicos e pautas apenas nesses dias. Aí que mora o perigo.
Quem conhece a escritora Chimamanda Ngozi Adichie, com certeza já ouviu falar sobre “O Perigo da História Única” e o fato de, ao abordarmos apenas uma narrativa e um caminho de vivência, contribuirmos para a manutenção de estereótipos. Aplicando esse pensamento à publicidade, podemos pensar em quem escolhemos retratar quando temos os famosos briefings de calendário de diversidade nas mãos. Qual mulher escolhemos mostrar no Dia da Mulher? Qual vivência trans é contada no dia da Visibilidade Trans? Qual pauta racial vira assunto na nossa campanha do Dia da Consciência Negra?
O perigo da data única é o perigo da miopia. De retratar públicos amplos, como os acima, seguindo sempre as mesmas receitas. É o perigo de excluir 99% das histórias para contar apenas uma – que muitas vezes é mais aceita pela agência e pela marca. E que, provavelmente, é a história mais morna.
Em 2019, uma pesquisa da Kantar mostrou que 76% das mulheres e 71% dos homens não se sentiam representadas e representados pela publicidade. Sete em cada dez. Será que estamos fazendo o bastante para melhorar esse número? Pensa bem, estamos falando de um mercado que depende da relevância da mensagem para existir e que, sem representatividade, dificilmente entregará todo o seu potencial.
Sou uma mulher negra e lésbica, nasci em uma das áreas periféricas de São Paulo e, até hoje, nunca vi uma comunicação de marca sequer que representasse minha realidade.
Eu sei, muita gente pode dizer que é melhor retratar um recorte de público do que não retratar nenhum. Ou então, que não é papel da publicidade representar histórias de tantas pessoas, que podemos adotar um público aspiracional e pronto, as pessoas se verão nele. O próprio mercado foi nos ensinando assim. Mas veja bem: os tempos mudaram e não estou falando só sobre representatividade e sobre fazer o bem. Esse texto é sobre estratégia.
Estimativas apontam que, por dia, vemos entre 5 mil e 10 mil anúncios. Eu não sei você, mas não consigo lembrar nem de 10 campanhas que vi ontem, mesmo trabalhando com isso. A neurociência explica: do total de propagandas que chegam até nós, só um percentual muito baixo passa pela barreira da nossa atenção e memória. Mapeamos concorrentes nos nossos planos estratégicos, mas a verdade é que estamos concorrendo por atenção com o BBB, a crise ambiental, conflitos internacionais e com o presidente.
E tem mais: nos dias do calendário da diversidade, estamos concorrendo também com inúmeras marcas brigando por destaque dentro do mesmo assunto. O perigo da data única é também o perigo de virar paisagem no meio disso tudo.
O próprio ativismo vem cobrando as marcas há tempos para que mostrem apoio a pautas como gênero, orientação sexual e raça o ano todo. O discurso já é velho, mas, ano após ano, vemos marcas insistindo no erro – inclusive do ponto de vista do negócio.
Segundo o report global Trust Barometer 2022, realizado pela Edelman, vivemos em um país onde as pessoas esperam mais das empresas do que de ONGs e do governo, quando o assunto é resolver problemas sociais. O gap de confiança entre empresas e governo aqui é de 30 pontos. Esse dado tem dois lados. O lado ruim é que não é seguro depender de empresas que têm o lucro como meta para que melhoremos como país, porque a melhoria social dificilmente se tornará uma prioridade para elas. O lado bom é que as empresas estão sendo mais cobradas e vigiadas quanto à sua atuação social. As pessoas estão querendo ver mais verdade e menos discurso. Ou, como o marketing gosta de chamar: mais storydoing e menos storytelling.
A forma mais familiar de cobrança é a própria crise. O que vemos todo mês com marcas que minimizaram a importância da contratação, do letramento de lideranças, que agiram de forma oportunista em sua comunicação ou que levaram seus preconceitos até a ponta, errando no discurso.
Mas eu não estou aqui para falar de crise. Estou aqui para falar sobre o que é perdido quando escolhemos apenas um dia por ano para tentar acertar. Quando não olhamos para todos os briefings de todos os 365 dias como oportunidades para naturalizar essas pautas e esses públicos – afinal, se escolheremos pessoas para o shooting e para o plano de influência, se escolhemos alguma história para contar, temos o poder de fazer diferente, de fugir do óbvio – que na maioria dos casos é um óbvio branco, cisgênero, heteronormativo, estereotipado em papeis de gênero, capacitista, gordofóbico e etarista.
O perigo da data única é o perigo de reforçar estereótipos por contar poucas histórias, poucas vezes. De virar paisagem por dividir holofote com outras inúmeras marcas. De soar rasa para o ativismo e desinteressante para o público massivo. De ser oportunista e ter que lidar com uma crise. De perder oportunidades de crescer em ESG e de ser bem-vista pelas pessoas que esperam atuações sociais das marcas.
Para o ativismo, a data única é fundamental e uma chance de ampliar uma discussão e construir mudança. Para a publicidade, é um caminho superficial, preguiçoso e, provavelmente, o caminho do erro.
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