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Opinião

Mulheres que devem ser vistas

Maria Firmina virou escritora. Mas não qualquer uma, já que ela foi a primeira romancista brasileira


10 de novembro de 2022 - 15h12

Imagem da escritora Maria Firmina dos Reis, primeira romancista brasileira, recriada em concurso realizado pela Flup – Festa Literária das Periferias (Crédito: João Gabriel dos Santos Araújo/Reprodução)

Esta é a minha segunda colaboração aqui. A honra de respirar o mesmo ar que respiram as mulheres que fazem diferença nas suas áreas só faz crescer. Algumas eu admiro ao vivo e outras, a distância; mas amaria sentar com todas ao redor de uma mesa para um bom papo e uma taça de vinho.

A gente sabe muito bem aonde pode chegar quando a nossa potência feminina tem espaço para acontecer com profundidade. Mas conhecemos também – e tão bem – o teto baixo que sempre nos impediu de percorrer nossos caminhos do jeito que deveríamos. Pois bem, trago novidades: o teto é retrátil. E esse palco construído com muito suor, por meio de pautas urgentes-urgentíssimas, deve ser oferecido a muitas, mas muitas mulheres. Tantas que precisaríamos de anos só falando sobre elas. Por isso, eu vou usar esse meu espaço para colocar a devida luz sobre outras mulheres que DEVEM ser vistas, ouvidas, acompanhadas. Elas, que fizeram e fazem muita diferença, mas para quem a História só recentemente começou a conceder as páginas que merecem.

Hoje vou falar da primeira escritora negra homenageada na Festa Literária Internacional de Paraty, carinhosamente conhecida como FLIP, o maior evento literário do Brasil.

Você conhece a Maria Firmina dos Reis? Eu só a conheci recentemente, por intermédio da Tati Nascimento, uma amiga bem mais sabida do que eu.

A Maria é um colosso, uma força da natureza. Mulher preta, nascida no Maranhão, por volta de 1822 – a data real não se sabe ao certo. Filha de uma escrava liberta e de um homem branco, ex-sócio do seu antigo “dono” (impressionante como, mesmo com aspas e sem intenção, é muito difícil escrever isso).

Aos trancos e barrancos, pela dificuldade de acesso à educação, ela conseguiu se alfabetizar e tornou-se “professora das primeiras letras” numa escola da região. Além de professora, Maria Firmina virou escritora. Mas não qualquer uma, já que ela foi a primeira romancista brasileira. Pode parecer que eu esqueci uma palavra, mas você leu certo. Ela não foi a primeira escritora PRETA brasileira. Foi, simplesmente, a primeira, uma espécie de Serena Williams da literatura, lançando seu livro “Úrsula”, em 1859. Nele, são narradas, de um jeito surpreendentemente humanizado para os padrões da época, as relações amorosas entre pessoas escravizadas. Maria “descoisou” corpos pretos como ninguém nunca havia feito. Contava as histórias de dentro para fora, transformava seus leitores em mosquinhas no vestiário. Numa época em que as pessoas escravizadas correspondiam a cerca de um terço da população do Maranhão, o feito de Maria não era pouca coisa.

Mas você acha que só as pessoas do círculo de Firmina liam seu livro? Nada disso. A qualidade da sua escrita fez com que “Úrsula” circulasse por públicos diferentes. Mas isso só aconteceu porque o nome da autora não foi divulgado na capa do livro e, no lugar dele, lia-se “uma escritora maranhense”. Ciente de que muita gente se recusaria a ler um livro escrito por uma mulher preta, preferiu se manter à sombra e deixar que sua obra circulasse por outras esferas. Os leitores saberiam que a obra foi concebida por uma mulher, mas por uma preta já seria demais. O que Maria escrevia até podia ser escrito, só que não por ela. Maria falava de assuntos de alcova do seu grupo, coisas que a elite nunca suportaria ouvir em voz alta.

E voz alta era Maria Firmina dos Reis todinha.

Ela ainda lançou o romance “Gupeva” e o conto “A Escrava”, entre outros. Nenhum tão icônico quanto “Úrsula”, mesmo que este tenha vivido em total obscuridade por mais de 100 anos.

Aos 54 anos, ela se aposentou da escola onde trabalhava, mas não parou. Montou uma escola num barracão para alfabetizar crianças pobres, principalmente negras, onde meninas tinham acesso garantido. Gigante que era, Maria alfabetizava e dava de ler. Ela era abolicionista, feminista e tantos outros “istas” muito pouco comuns na época.

Depois de pesquisar sobre Maria Firmina dos Reis, eu concluí que, se ela fosse viva hoje, seria colaboradora nesta plataforma. Foi uma grande comunicadora, levando suas ideias e visões para muita gente; lutou para conseguir espaço num lugar onde seu maior obstáculo era ser ela mesma; foi uma grande empreendedora e formadora de opinião.

Pensando bem, a participação dela aqui é ainda maior: se não fosse por mulheres como Maria, talvez este espaço nem existisse.

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