Roseani Rocha
1 de dezembro de 2020 - 6h00
Evgenia Markova, que este ano assumiu o cargo de CEO da Roskino (Crédito: Divulgação)
Em breve, mais exatamente de 10 a 30 de dezembro, os cinéfilos brasileiros poderão conhecer um pouco do que tem sido feito recentemente pelos russos em sua indústria cinematográfica. Nesse período, acontecerá o Festival de Cinema Russo, organizado pela agência estatal Roskino, que fomenta a sétima arte naquele país desde 1924, portanto, quando ele ainda era a maior nação da extinta União Soviética.
O festival online começou este ano em quatro países. Na Austrália, aconteceu em novembro; além dela, inclui México (19/11 a 17/12), Brasil e Espanha (nestes dois últimos com exibições na mesma data). A programação poderá ser vista gratuitamente no streaming da Spcine e inclui oito filmes, todos feitos entre 2016 e 2019: os dramas Arritmia (dirigido por Boris Khlebnikov), Bolshoi (Valery Todorovsky), O Coração do Mundo (Natalia Meshchaninova) e O Homem que Surpreendeu a Todos (Natasha Merkulova e Aleksey Chupov); o drama histórico O Francês (Andrei Smirnov); o suspense O Texto (Klim Shipenko); a comédia Vamos nos Divorciar! (Anna Parmas); e a animação O Reino Gelado: Terra dos Espelhos (Alexey Tsitsilin e Robert Lence).
Em entrevista ao Meio & Mensagem, Evgenia Markova, CEO da Roskino, comenta a iniciativa de organizar um evento como este e sua expectativa quanto à imagem do cinema russo no mercado internacional e à receptividade do público brasileiro, que aliás, terá no festival uma boa pedida cultural num momento em que as restrições da pandemia voltam a ser apertadas em algumas cidades, por conta do aumento do número de casos de Covid-19.
Meio & Mensagem – É a primeira vez que um evento produzido pela Roskino chega ao Brasil. Como você avalia o Festival de Cinema Russo em todos os países onde ele já estreou?
Evgenia Markova – Já temos números provisórios de nossos parceiros: menos de duas semanas desde que o festival começou na Austrália, já tivemos dezenas de milhares de visualizações. No México, o festival de cinema começou em 19 de novembro, e os resultados provisórios mostram também milhares de visualizações, grande presença nas redes sociais e feedback muito positivo. É um fato interessante que, em ambos os países, os líderes são a comédia Vamos nos Divorciar! (Another Woman) e o drama de balé Bolshoi (Vamos nos Divorciar! está agora liderando no México, o Bolshoi está em 2º lugar; na Austrália o líder é Bolshoi, e Vamos nos Divorciar! é o segundo). Posso explicar o sucesso do Bolshoi pelo alto conhecimento deste símbolo cultural em todo o mundo: o balé russo é uma marca popular bem conhecida. Quanto a Vamos nos Divorciar!, é a única comédia no programa do festival, e eu acho que as pessoas precisam de algumas emoções positivas nas circunstâncias inquietas de hoje, causadas pela pandemia e confinamentos. Estou ansiosa para ver qual filme será o favorito no Brasil e na Espanha. Estamos muito felizes pela comédia russa liderar em diferentes regiões, porque geralmente o humor é algo que é realmente difícil de “transferir” para outro país, é algo muito específico. Mas como vemos esse feedback positivo, estamos pensando em adicionar mais filmes de comédia para as próximas edições, porque temos muito o que mostrar.
M&M – Entendo que esta é a primeira edição online do festival; quais foram os critérios para escolher os países e filmes para este ano e os planos para 2021, de acordo com o plano de expansão da Roskino?
Evgenia – Quanto aos países, escolhemos estes quatro por várias razões. Primeiro, estamos muito interessados em abrir novos caminhos culturais. A Rússia e o Brasil não têm muito em comum, culturalmente. Assim, uma das razões pelas quais escolhemos esses países – México, Austrália, Brasil e Espanha – é sua diversidade cultural. É muito interessante começar a construir esses novos laços culturais entre nós. Agora, quando vemos este momento do conteúdo russo se desenvolvendo nos mercados globais, ficamos muito curiosos sobre que tipos de filmes (e que tipo de conteúdo em geral), serão interessantes e relevantes para os diferentes tipos de público. Apesar das diferenças geográficas, quais países terão mais interesse em que gêneros; quais filmes serão mais relevantes para quais países. Há mais alguns aspectos que levamos em conta, como o interesse pela cultura russa, uma série de plataformas de VOD que fornecem conteúdo on-line russo nestes países, bem como um forte interesse e entusiasmo sobre este projeto a partir das plataformas VOD. Outra razão é que consideramos esses países como mercados de enorme perspectiva para o conteúdo russo. Sentimos que há muito potencial também no campo da coprodução em diferentes segmentos – filmes, séries, animação. Quanto aos filmes, a programação do Festival foi feita para atender aos interesses de um grande público, de diferentes idades e com diversas preferências em gêneros cinematográficos. Quanto a 2021, estamos planejando expandir o número de países para os festivais online e esperamos ter a chance de realizar alguns eventos presenciais também. Assim, planejamos fazer festivais presenciais em cerca de cinco países – quando a situação no mundo permitir – e incluir mais de 20 países no formato online, lista que estamos agora finalizando.
M&M – Você trabalhou como agente de desenvolvimento cultural em sua recente carreira; como isso ajudou a entender completamente as necessidades do mercado global, especialmente em meio à pandemia de Covid-19?
Evgenia – Sim, durante minha carreira trabalhei em diferentes esferas, de negócios a projetos culturais e de volta aos negócios, e tenho uma experiência substancial em marketing e gestão internacional. Com certeza, essa experiência e a diversidade dos projetos em que estive me ajudaram a entender o mercado global. Vejo o conteúdo tanto como um valor cultural, quanto como um produto competitivo que pode ter sucesso nos mercados internacionais, e conheço todas as ferramentas para trazer esses produtos a esses mercados. A pandemia da Covid-19, é claro, estabeleceu novos desafios para todos os líderes em diferentes segmentos de negócios. No entanto, novos desafios significam novas oportunidades e um potencial de desenvolvimento. Nesta primavera, tivemos eventos inaugurais Key Buyers (KBE) – o primeiro evento nacional de mercado online, que foi um grande desafio para nós, reunir toda a indústria, mas também uma grande oportunidade. O KBE teve uma cobertura incrível na mídia, 1.600 participantes de seis continentes, centenas de reuniões, e uma quantidade substancial de negócios fechados. Então, devo dizer que novos desafios nos trouxeram novas ideias. Um dos resultados que estamos tendo é justamente a realização do primeiro Festival de Cinema Russo online nas plataformas de VOD, que em termos de potencial de visualizações é mais eficaz do que eventos presenciais.
M&M – No Brasil, as melhores referências do cinema russo que temos são muito tradicionais – Eisenstein, Tarkovsky, Kalatozov, Sokurov. Como você descreve a cena do cinema russo moderno?
Evgenia – Eu diria que nosso cinema moderno está a caminho de formar seu caráter. O cinema russo está crescendo em direções diferentes. São ambos: filmes clássicos baseados na grande literatura, bem como histórias modernas de ficção científica, terror e suspenses. Não há uma única maneira de descrevermos essa nova cena. Os diretores modernos são muito fortes em combinar o grande patrimônio cultural do país e as tradições do cinema clássico às novas tendências globais e interesses do público internacional.
Literatura clássica russa é um dos pilares da indústria cinematográfica do país, segundo Evgenia Markova (Crédito: Divulgação)
M&M – Você acha que a Rússia soube transpor bem para os roteiros de cinema sua sólida tradição literária?
Evgenia – A literatura clássica russa é certamente um dos pilares da nossa indústria cinematográfica. Ainda é reinventada, não só em nossos filmes, mas também nos filmes internacionais, porque os livros de Leo Tolstoy, Feodor Dostoievsky, Mikhail Bulgakov, Anton Chekhov, Alexander Pushkin, Boris Pasternak, Arkady, Boris Strugatsky e muitos outros, levantam questões eternas que permanecem importantes, independentemente da época. Eles ajudam nossos roteiristas e diretores a fazer, por um lado, histórias universais, e por outro lado, histórias com fortes particularidades russas. Essa herança cultural de grandes livros de escritores e poetas russos também nos ajuda a explorar a natureza humana e as relações de forma profunda e de diferentes ângulos. Na programação do Festival de Cinema Russo, você encontra o filme O Texto (The Text), que é baseado em um best-seller de Dmitry Glukhovsky, um dos mais populares escritores de livros da Rússia neste momento. Este filme foi um dos mais populares na Rússia ano passado e agora foi avaliado com nota 9.0 pelos espectadores da FilminLatino, a plataforma de VOD que é a nossa parceira do festival no México.
M&M – Quais são os maiores desafios do cinema russo hoje, tanto nacionalmente quanto no exterior, onde vimos recentemente outros cineastas internacionais prosperando, como os sul-coreanos? Quais são as ideias de Roskino em termos de distribuição internacional e coprodução?
Evgenia – Em primeiro lugar, apesar de todas as dificuldades em todo o mundo em 2020, fico feliz em dizer que foi um grande ano de avanço para a cinematografia russa. Podemos ver essa tendência crescente nos últimos três a cinco anos. De 2010 a 2012, o governo russo, em particular o Ministério da Cultura e Fundo Cinematográfico Russo, começou a investir na indústria cinematográfica local, o que definitivamente impulsionou enormemente seu crescimento. O que significa que durante os três a quatro anos seguintes, conseguimos um grande número de projetos, que nos propiciou ir aos mercados internacionais. O que temos agora é o resultado desses investimentos. Também vemos que a indústria russa de séries (quero dizer, grandes players da mídia produzindo séries) impulsionou o desenvolvimento e o crescimento dos conteúdos das séries russas. Então, vemos que em ambas as direções, filmes e séries, incluindo aí as animações, há uma dinâmica positiva. O número de projetos está crescendo, as bilheterias estão crescendo – tanto na Rússia quanto no exterior – e a quantidade de pessoas criativas trabalhando na indústria está crescendo também de ano para ano, bem como o número de prêmios internacionais vencidos pelos conteúdos russos. Falando em desafios, a indústria russa tem que se tornar mais transparente para o mundo, e é isso que eu vejo como o principal objetivo da Roskino – ser uma espécie de janela para ambos os lados, tornando o mercado russo mais transparente para o público mundial, e os mercados globais mais compreensíveis para os criadores russos. O segundo desafio que vejo é o de crescimento: a indústria russa está crescendo muito rapidamente, o que significa que estabelece altos requisitos para todos os profissionais que trabalham na indústria. É importante poder aumentar o número de profissionais e talentos e desenvolvê-los dentro do setor, para que eles possam entregar qualidade dentro da grande quantidade de projetos que são feitos. A Roskino está iniciando agora diferentes iniciativas educacionais, como a recente EAVE ON DEMAND IN RUSSIA (em parceria com empreendedores do audiovisual europeu) para produtores russos que queiram desenvolver seus projetos internacionalmente. Entendemos que ganhar as audiências internacionais é muito mais fácil com projetos de coprodução. A coprodução é um novo foco da indústria de conteúdo russa – facilita a promoção nos mercados mundiais, acumula as experiências internacionais e contribui para o setor da indústria criativa de todos os países envolvidos no processo de coprodução. A quantidade de produtores e projetos interessados em coprodução está crescendo ano a ano. Por exemplo, em junho de 2020, esperávamos cerca de 20 pedidos de produtores russos para participar da seção de coprodução durante o Key Buyers Event: Digital Edition organizado pela Roskino. E recebemos cinco vezes mais – quase 100 inscrições, das quais 45 eram de projetos de alta qualidade, que foram apresentados aos parceiros internacionais durante o lançamento. Então, o interesse é muito alto e o número de produtores que trabalham neste campo na Rússia está definitivamente crescendo.
M&M – Até que ponto o Governo russo trabalha em conjunto com os produtores, ele caminha junto com o desenvolvimento do setor ou nem sempre isso acontece?
Evgenia – O Ministério da Cultura da Federação Russa, o Fundo De Cinema Russo, o Centro Russo de Exportação e o Centro de Exportação de Moscou desenvolveram um pacote de medidas para ajudar a indústria russa de conteúdo durante a pandemia. O suporte está sendo fornecido em diferentes direções: suporte à produção – apoio financeiro direto para novos projetos e lançamentos em cinema. Apoio financeiro direto para cinemas, com o desenvolvimento e modernização de cinemas em cidades pequenas. Um programa voltado para o apoio de empresas estratégicas na indústria de conteúdo e incentivos fiscais para animação. Relações B2B, coprodução e apoio à promoção, também. Este ano, as contrapartidas foram introduzidas à indústria, não da forma planejada (devido à Covid), mas esperamos que nos próximos anos elas se desenvolvam e cresçam. O importante no apoio à exportação do conteúdo russo são os subsídios às dublagens e legendagens, bem como ao marketing – que também é subsidiado pelo governo russo às empresas, o que também ajuda muito.
M&M – Como o marketing está estruturado na Roskino? E, no final, qual é a imagem que a empresa deseja que o mundo tenha da moderna indústria do cinema russo?
Evgenia – Falando sobre a estrutura de marketing dentro da empresa, temos todas as etapas, desde pesquisa até a assessoria de imprensa. Definitivamente estamos trabalhando em estreita colaboração com a indústria, para entender suas necessidades. Também estamos constantemente trabalhando em uma melhor compreensão do mercado global, para saber o que os diferentes públicos desejam e quais são as melhores maneiras de promover o conteúdo russo em todo o mundo. Quanto à imagem da moderna indústria cinematográfica russa, eu diria que a imagem deve corresponder à realidade. E a realidade é que a indústria criativa russa é muito jovem por enquanto, mas tem grandes caminhos a percorrer e uma história no passado da tradição cinematográfica soviética muito talentosa, muito dinâmica, crescendo e se desenvolvendo rapidamente, muito motivada e ansiosa para desenvolver novas relações a fim de manter a cooperação. Então, é para isso que agora caminhamos. E eu realmente quero que a indústria seja vista exatamente como é, sem quaisquer preconceitos. Esperamos que, em breve, possamos viajar novamente e convido a todos que nos leem a virem nos visitar – e iremos também até vocês, para finalmente nos conhecermos!
**Crédito da imagem no topo: Denise Jans/Unsplash