Contra-ataque: a voz das mulheres no futebol
Liana Bazanela, diretora de marketing e comunicação do Internacional, analisa os desafios para entrada de mulheres na gestão esportiva e o combate aos preconceitos ainda perpetuados no mercado
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Valeria Contado
14 de dezembro de 2021 - 6h04
Com experiência no mundo do marketing, e mais de 10 anos de atuação como executiva e CEO em agências de publicidade, além de ter sido presidente da Associação Rio-grandense de Propaganda (ARP) – a única mulher nos 65 anos da entidade -, Liana Bazanela assumiu a direção do departamento de marketing e comunicação do Sport Club Internacional em junho deste ano.
Em sua agenda, pautas de diversidade se tornaram mais presentes no cenário do clube, que procura fazer ações e desenvolver trabalhos de equidade. Além disso, a categoria feminina mostra crescimento em divulgação e trabalhos de base, tornando o time uma força na modalidade.
Para ingressar no meio esportivo, um ambiente tradicionalmente machista e inóspito para mulheres e pessoas LGBTQIA+, principalmente em posições de poder, Liana levou em consideração toda sua experiência na liderança de agências e meios de comunicação, além de entender que era o momento de jogar luz ao assunto. “Quando me convidaram para assumir o marketing do Internacional, levei em consideração todo esse contexto, de saber que é um universo majoritariamente masculino, e que seria um grande paradigma a entrada de uma executiva mulher ”, comenta.
Meio & Mensagem – Quais são os principais entraves para uma mulher entrar no mercado de marketing esportivo no futebol?
Liana Bazanela – Percebemos que é um universo muito recente. A presença de mulheres em papeis executivos no futebol ainda está engatinhando, para não dizer que é praticamente irrisória. Eu, por exemplo, sou a primeira mulher dirigente de marketing de clubes do Brasil e aqui no Inter, a primeira diretora executiva. É um movimento de desbravar um espaço, com todos os paradigmas, preconceitos e histórias que construímos durante muitos anos, não é de uma hora para outra que conseguiremos conquistar um espaço com qualidade, com credibilidade . Eu não encontrei pares, estou a seis meses no clube e dentro dos fóruns de futebol, inclusive fóruns de inovação no futebol, de gestores de marketing, não existem mulheres nessas funções. A minha mesa de discussões é predominantemente masculina. É o começo de um movimento de mudança.
M&M – Quais estão sendo os principais desafios neste seu início no futebol?
Liana – Quebrar as barreiras do inconsciente coletivo, as culturais, de entrar uma mulher naquele lugar e sentar naquela mesa, ter voz. As pessoas nem sempre sabem como tratar o fato de ter uma mulher na mesa, e o que queremos é naturalizar isso. Esses seis meses me mostraram várias oportunidades de estar aqui, por isso que eu acordo todos os dias motivada para continuar quebrando essa barreira. Sou torcedora e sócia colorada, filha de um colorado que teve três mulheres como filhas, e sou a última, então, para mim, ele naturalizou o futebol desde pequena. Sempre consumi muito futebol e me preparei para estar no futebol, não da forma que eu gostaria, desde a roupa que ia ao estádio, até quando vou falar de futebol e tenho que levantar a minha voz, se alguém vai dizer “nossa, o que essa mulher sabe de futebol?” Então, as principais oportunidades que eu tenho visto são de levar outras situações, não só de equidade, mas de diversidade, um olhar atento a isso.
M&M – E como está a questão de diversidade dentro do clube?
Liana – Quando cheguei aqui no Inter, nós não tínhamos nenhum negro no marketing, no clube do povo (apelido do time), que tem a maior diversidade de torcida, que tem uma história, um legado que fala sobre isso (junto com Liana, o Internacional contratou Ubirajara Sagaz Júnior, para liderar a área de coordenação de marca do departamento). Diversidade puxa diversidade, a sensibilidade de ser alguém que está vindo de uma posição onde sofreu desigualdade e não foi tratada como uma forma natural. O clube está superaberto, o fato de terem me chamado para essa posição demonstra a vontade de fazer diferente e abrir as portas para mudar. Precisamos admitir que existe ainda uma realidade muito distante, não dá para entendermos que “ok, é suficiente, temos aqui a cota feminina para liderança, temos aqui a cota de negros nas posições adequadas”. Enfim, todo tipo de diversidade, tem muita oportunidade de representar as pessoas.
M&M – Quais medidas práticas foram adotadas no clube?
Liana – A última campanha que produzimos contra o racismo, que inclusive fizemos com pessoas reais, jogadores e jogadoras, sócios e sócias, funcionários e funcionárias negras, conseguiu traduzir para as pessoas o quanto isso é uma verdade em 2021. O preconceito ainda é uma realidade. Tenho comigo uma responsabilidade, e uma vontade de fazer coisas que mostrem, que deem luz para os efeitos positivos da diversidade, mas que quebrem paradigmas, e que possam abrir caminhos para outros movimentos de mudança. Em todos os sentidos, inclusive um pensamento comercial. Por muito tempo não tínhamos nem opções femininas nas coleções de camiseta que é a coisa mais básica. A mulher era sempre vista como uma segunda opção. Consumo o universo masculino, então, eu me masculinizo tanto na moda do esporte que hoje vem aumentando o planejamento de produtos para mulheres. O Inter é o clube que tem o maior número de sócias, que também é uma outra coisa que quando as pessoas não param para pensar sobre isso, elas não enxergam. As mulheres estão nas arquibancadas, e elas não estão consumindo algo diferente, estão ali porque querem ser tratadas como iguais, então, é necessário colocar opções de produtos e opções de experiências para que elas se sintam confortáveis, e esse também é um projeto nosso. Agora temos uma diretoria política de diversidade, que está com alguns movimentos para a criação de um botão de denúncia a qualquer tipo de preconceito no site. São várias atitudes somadas, que em conjunto com a direção, conseguimos fazer. Pequenas mudanças em movimento e sincronia para que possamos ter resultados percebíveis para as pessoas. O fato de mudar o discurso e naturalizar a presença das mulheres é importante de ser falado, para as pessoas verem o quanto isso é naturalizado como preconceito: Aqui no sul, todos os dirigentes de marketing que passaram em qualquer reportagem são trazidos como o dirigente “nome e sobrenome”, hoje, algumas pessoas da imprensa ainda carregam o preconceito histórico em relação a isso, me chamam de “a menina do marketing”, muitas vezes sem nome, sem sobrenome, e sem me conhecer. Julgam como a “guria do marketing do Inter”, e nunca vi ninguém chamar o “menino do marketing”, são coisas que são perpetuadas. Já demonstra isso na forma de tratar, no inconsciente das pessoas, talvez elas nem pensem sobre isso, mas elas fazem. É difícil criar uma imagem positiva de criatividade se você é tratado de forma não condizente com a sua função.
Os desafios do patrocínio além do futebol
M&M – O futebol acaba sendo um ponto de contato, uma forma de abrir diálogos com a sociedade?
Liana – Somos conhecidos como País do futebol, nascemos dentro desse conceito, vestimos a camisa da seleção, para mostrar o nosso patriotismo, dizer que o futebol é um ambiente masculino é naturalizado nas pessoas desde a infância, sendo que é uma paixão nacional. Esse legado vem passando de geração para geração, mudando muito o protagonismo das coisas, o conhecimento e até a evolução do esporte. Em um ambiente que se diz democrático como o futebol, precisamos falar disso, precisamos aproveitar que envolve a emoção das pessoas para mostrar o quanto é presente o preconceito na sociedade.
M&M – O que mais chamou sua atenção nas reuniões internas e com clientes?
Liana – Causa um certo constrangimento subliminar, uma coisa que está no ar. Não é algo escrachado. Está ali, ninguém fala sobre, mas a gente sente. Tem um preconceito velado, natural, nas pessoas. Quando você entra numa reunião e diz “oi, sou a diretora de marketing”, causa um certo impacto. Se eu pudesse generalizar, num sentido cultural, acho que vale para todos os âmbitos. As coisas não são naturalizadas para ter uma mulher. Das coisas mais tradicionais num ambiente de liderança, aquilo ali não está preparado para uma mulher. Desde as coisas mais básicas, até questões de serviço. Quando você se senta à mesa com dirigentes de marcas parceiras, ainda se tem esse olhar curioso. Eu gostaria de não ser apresentada em todos os momentos como sendo a primeira dirigente de futebol mulher. Não que isso me incomode. Mas queria que não precisasse mais. Não precisa trazer como um adjetivo o fato de ser mulher. Me orgulho de ser, acho que faz parte, tem, sim, que colocar luz nesse assunto, mas não é sobre isso. É sobre trabalho, talento, experiência. Eu estou aqui como diretora de marketing, a minha história e meu conhecimento técnico me trouxeram aqui. Não é o fato de ser mulher, ou qualquer outro tipo de categorização que me faz menos ou mais competente. Só percebe quem sente, porém, no clube em si, até me surpreendi positivamente, com a recepção de pares e colegas.
M&M – Como a presença de uma diretora mulher pode colaborar com a agenda de diversidade no futebol?
Liana – Eu sou entusiasta da ideia de que diversidade puxa diversidade. O fato, primeiro, de quebrarmos barreiras e mostrar que é possível. Trabalhamos nosso senso cultural que por muitos anos disse a presença de mulheres no futebol, em todos os sentidos, como jogadora, como torcedora, como atuante em posições administrativas, sendo uma coisa que não fazia parte. Meu senso comum nem parte do princípio de que, eu enquanto uma menina, enquanto uma jovem profissional, talvez eu nem pensasse em chegar ao futebol, porque é uma coisa que já foi trabalhada desde sempre pela nossa cultura, de que futebol é um espaço masculino. O fato de colocarmos na vitrine e darmos luz a essas mulheres, é uma coisa superimportante. Mostrar que elas podem, sim, e têm competência técnica e conhecimento para estar em posições de liderança no futebol e em todas as áreas, faz com que desperte o interesse de outras mulheres por esse ambiente, assim como acaba naturalizando a presença de mulheres no futebol. Brinco que estamos no contra-ataque: digamos estávamos lá na defensiva e roubamos a bola. Estamos tentando correr, para pegar uma velocidade, mas ainda nos falta fôlego, preparo físico, apesar de ter técnica, ainda falta um treinamento para que possamos fazer isso de uma forma mais natural, realmente chegar a resultados e concretizar o gol. Agora começamos a enxergar a possibilidade de pegar a bola e mostrar com qualidade, com resultado e dados. Sempre gosto de tudo o que eu tento trazer para o clube, com relação a diversidade, equidade de gênero, e qualquer tipo de outra situação de minoria, trazer dados. Não é uma questão de o clube querer entrar em uma onda, ou um modismo. Ao contrário! Tento mostrar o quanto temos dados que resultam em coisas positivas, a partir de investimentos de diversidade. Nossa trajetória é longa, o fato de quebrar paradigma abre espaço para quebrar também a barreira de entrada para conseguir dar uma velocidade maior para outras entrantes.
M&M – Como o projeto de futebol feminino do Inter pode contribuir para a entrada de mais mulheres no ambiente esportivo?
Liana – Precisamos mostrar para que as pessoas possam se espelhar, se inspirar, passar pela cabeça das pessoas que “posso ser uma profissional, jogadora de futebol”. Ainda tem um lugar muito distante do dia a dia, das pessoas, quando você vê uma menina, ainda categorizamos coisas de menina e coisas de menino, e não é uma coisa natural. Aqui, por exemplo, foi um ano que tivemos várias conquistas no feminino e fizemos até uma provocação para a torcida, numa campanha que mostrava “garra as meninas já têm, talento as meninas já têm, elas precisam de visibilidade”. Quando você lembra qual foi o último campeonato que o Inter ganhou, naturalmente pensará no futebol masculino, mas acabamos de ser tri campeãs em cima do nosso maior rival. A cobertura está longe de ser o ideal, mas vem aumentando e nós, enquanto clube, também estamos colocando mais visibilidade em todos os nossos canais, em todas as nossas plataformas. Mostrar o futebol, naturalizar como uma coisa que faz parte da nossa cultura, também, é uma forma de inspirar novas meninas a pensarem nas práticas de esporte de uma forma mais próxima. O futebol é tão popular, tão acessível, mesmo que ele tenha nascido dentro de um contexto elitizado, hoje, poderia trazer isso para qualquer realidade de meninas, mas ainda temos muito preconceito. Temos que falar sobre isso. Falar que equidade de gênero é um movimento sem volta, quem está contra, ou não entendeu que esse movimento existe e continuará acelerando, ficará para trás. Quando fazemos uma campanha, que sim, vamos ter uma parte das pessoas que de alguma forma se sentirão não representados por estarmos valorizando o diferente, a diversidade, essas pessoas ficarão para trás. São coisas que só vamos mudar se praticarmos. Colocar as coisas para funcionar e sempre colocando luz nesse assunto.
Crédito Topo: João Callegari
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