Existe amor em São Paulo?
O cantor Criolo ficou conhecido por levar temas da periferia aos palcos por meio do rap, hip-hop, samba ou pela mistura de todos os ritmos
O cantor Criolo ficou conhecido por levar temas da periferia aos palcos por meio do rap, hip-hop, samba ou pela mistura de todos os ritmos
Ruvila Avelino
12 de abril de 2016 - 15h56
Kleber Cavalcante Gomes, conhecido artisticamente como Criolo, envolveu-se com a música em 1989, no universo musical e cultural da periferia. Mas apenas em 2006 seu primeiro disco, Ainda Há Tempo, foi viabilizado para gravação, em uma pequena amostra. Às portas do aniversário de dez anos de sua estreia oficial, o cantor acumula mais dois álbuns — Nó na Orelha (2011) e Convoque seu Buda (2014) —, além do disco Viva Tim Maia! (2015), em parceria com Ivete Sangalo. Com show de relançamento de Ainda Há Tempo ocorrido em 1º de abril, em São Paulo, e turnê agendada pelo Brasil, no final deste mês Criolo parte para uma série de shows na Inglaterra. O cantor ficou conhecido principalmente por levar temas da periferia para os palcos por meio do rap, hip-hop, samba ou pela mistura de todos os ritmos, como mostra em suas músicas. De Bogotá ao seu maior hit, Não Existe Amor em SP, Criolo entrega algumas das canções mais inventivas da música brasileira, em uma obra dinâmica, mas sem fugir do propósito de cantar a vida do povo e a realidade dos brasileiros. Criolo foi um dos responsáveis pela criação do projeto Rinha dos MC’s, com o objetivo de promover a troca de experiências entre jovens artistas do extremo da zona sul de São Paulo. Aberto desde então, o coletivo promove batalhas de freestyle, um tipo de improvisação musical, apresentações de grupos de rap, dança, discotecagem, grafite e outras manifestações culturais.
Meio & Mensagem — Como você se envolveu com a música?
Criolo — Comecei reparando nas músicas que meus pais colocavam para tocar em casa, no rádio, os vinis que compravam. O rádio estava sempre ligado em casa. Todos os dias. Foi assim, dentro de casa, que peguei gosto pela música.
M&M — Onde busca inspiração para criar?
Criolo — Muito do que me inspira são as minhas vivências, as vivências das pessoas próximas de mim, que dividem suas histórias e seus gostos. As coisas que nós vamos vivendo. Isso tudo parece que é pouca coisa, mas a toda hora recebemos um monte de informações. Isso tudo, em algum momento, tem um bate-papo, uma troca, e são combustíveis para criar. De modo natural, surge alguma coisa — que me emociona um tanto a mais e quando vou ver já tem uma frase ou uma melodia passando pela minha cabeça. Não é uma coisa que paro e falo “agora vou criar”. Quando você vê, se emociona e nasce uma canção, uma melodia.
M&M — Como se diferenciar do que os outros cantores fazem?
Criolo — Na verdade, não tenho essa preocupação. A música é infinita, mas, às vezes, temos a impressão de que tudo já foi feito. Então, poder viver a música e deixar que ela flua de modo natural é a coisa mais saudável de se fazer. Não há uma preocupação de ser diferente porque não sinto a música como uma coisa que seja para concorrer. Um músico não concorre com outro. Não é como se estivéssemos atrás de uma linha de chegada. Música é para você sentir. Se você senti-la do jeito que ela vem para você, você vai se relacionar com essa sensação.
M&M — Você já sentiu que teve de ir contra seus instintos criativos para se encaixar no mercado musical?
Criolo — Venho de uma cena do final dos anos 1980 e um processo criativo que nem era enxergado como arte. Não me via como arte. Ou como música ou rap ou como poesia marginal. Na verdade, nunca liguei para essa coisa de mercado. Desde o início é assim: se o coração pede, vamos fazendo.
M&M — Você afirmou no seu perfil no Facebook: “Dez anos após o lançamento do meu primeiro disco, sinto a mesma necessidade e urgência de trabalharmos o amor, respeito, carinho e a solidariedade”. O que faz com que esses assuntos sejam tão urgentes?
Criolo — Nesse meu disco em especial (Ainda Há Tempo), comemoro dez anos do nascimento da obra. Esses dias estava conversando com o meu pai e ele se lembrou de uma música que foi escrita há 20 anos. Aí me dei conta de que, infelizmente, algumas coisas não mudaram. Ainda vivemos em um abismo social, uma desigualdade muito grande no nosso País. Nesse sentido de relembrar que temos força em nossos corações, luz e o brilho no olhar, não podemos desistir de nossos sonhos, das nossas esperanças, sabe? É nesse sentido, porque o meu desejo é cantar para celebrar. E poder celebrar um dia um mundo melhor. Mas, algumas coisas, mesmo que você revisite uma letra que fez dez anos, 15 anos e até 20 anos atrás, ainda não mudaram, infelizmente.
M&M — Assusta-o perceber que algumas coisas não mudaram?
Criolo — Acho que nos deixa com um ponto de interrogação de o porquê. Em todos os cantos, em todas as camadas sociais, todos dizem a mesma coisa: “Queremos um Brasil melhor” e “queremos um mundo melhor”. E ficamos com esse ponto de interrogação: se todo mundo quer, por que quem cuida disso tudo não está viabilizando? Fico com esses questionamentos na cabeça.
M&M — Você acredita que esses temas citados — o amor, o respeito e a solidariedade —, podem se esgotar eventualmente?
Criolo — Não! Não! Mesmo porque todo mundo tem uma fonte inesgotável de amor. Em algum momento da vida, pode ser que você não consiga se conectar com essas coisas boas devido a alguma situação que esteja passando, mas todos temos essa centelha de solidariedade, de compaixão, de colaboração. É natural nosso.
M&M — Na música, você fala muito sobre a favela. O que acha necessário mostrar ao mundo a respeito desse ambiente?
Criolo — É necessário mostrar aos que estão próximos de nós porque ainda não nos unimos para todos para diminuir essas desigualdades. Não adianta eu falar para fora do mundo, neste pequeno planeta em que vivemos, que enxergamos como nosso quintal, se não conseguimos conversar com nós mesmos em toda a cidade.
M&M — Como usar a música, o rap em especial, para a educação?
Criolo — Todas as expressões de arte são ferramentas com as quais você, com suas mãos, vai dar o devido local, peso e situação a essa arte. A arte é uma energia e ela se molda de acordo com a energia que você doa para ela. Tenho certeza de que o rap, e a música em geral, todos os estilos musicais, sem exceção, podem, de um modo ou de outro, servir de uma forma pedagógica e ajudar a compreender algumas coisas.
M&M — Você acredita que a música é transformação social?
Criolo — Acredito que, se você tem em si o desejo dessa contribuição, pode ser a música, a fotografia, a escultura, a dramaturgia, a litogravura, a xilogravura, todas as expressões de arte. Porque é você que está ali, pegando dessa energia e a transformando em outra coisa para tentar transformar ainda outra coisa.
M&M — A sua música desenvolve algumas críticas sociais e, com isso, gera reflexões em quem a ouve. Qual é a importância de gerar esse tipo de incômodo no público?
Criolo — Na verdade, só estou dividindo as coisas que vejo e vivo. Agora, como cada um se sente, vem carregado da sua bagagem cultural, seus valores, das coisas nas quais você acredita. Talvez uma canção minha toque seu coração e faça você refletir. Talvez não. A única coisa que faço é abrir meu coração e dividir um pouco das coisas que passam por ele com as pessoas. Depois disso, nunca sabemos o que vai acontecer.
A íntegra desta entrevista está publicada na edição 1705, de 11 de abril, exclusivamente para assinantes, disponível nas versões impressa e para tablets nos padrões iOS e Android.
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