Internet: meus dados, minhas regras
Crescimento da geração e coleta de informações pessoais no ambiente digital acirra debate sobre privacidade online
Crescimento da geração e coleta de informações pessoais no ambiente digital acirra debate sobre privacidade online
Fernando Murad
13 de janeiro de 2016 - 3h08
O volume de informações produzido durante a Era da Informação é maior que toda a quantidade gerada na história da humanidade. O ambiente digital universalizou o acesso aos mais diversos conteúdos e também facilitou a coleta de dados dos consumidores. Se no tempo dos nossos avós e bisavós o banco de dados dos comerciantes era basicamente a memória do dono do negócio que conhecia os hábitos dos seus clientes, atualmente todos os passos das pessoas deixam rastros na grande rede e eles são utilizados por empresas, governos e organizações.
Em meio a intensos debates sobre transparência corporativa, o crescimento da utilização da mídia programática, a disseminação de ad blockers e a escândalos de vazamentos de informações pessoais mundo afora — além da sombra do ciberterrorismo pairando no ar —, a privacidade de dados entrou na mira dos governos dos Estados Unidos, da União Europeia e também do Brasil, que estudam formas de conter abusos e proteger a individualidade dos cidadãos. A necessidade de regulamentação do tema parece ser um consenso. No entanto, há o receio de medidas muito restritivas impactarem negativamente atividades econômicas diversas.
“Quando se fala de privacidade, se fala de e-commerce. Você economiza tempo e tem muito mais opções. Se as marcas não tiverem os dados, como vão mandar ofertas? O pessoal quer travar uma das atividades mais modernas. O consumidor quer algo mais sempre e os comunicadores de CRM profissionais sabem que ofertas pertinentes têm resposta alta. Todos dão dados básicos e depois, à medida que se relacionam, os enriquecem. Se tentar criar legislação à revelia, corre-se o sério risco de engessar setores da economia que apresentam taxas de crescimento altas apesar da economia, como o e-commerce, que cresce 25% ao ano”, projeta Abaetê de Azevedo, presidente da Rapp na América Latina.
No País, o Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), apresentou em outubro do ano passado o Anteprojeto Brasileiro de Proteção de Dados Pessoais. “Trabalhamos com muito respeito e responsabilidade para ter essa proposta que irá compatibilizar os direitos fundamentais de privacidade e inviolabilidade com a livre iniciativa e a segurança jurídica necessária para o desenvolvimento de negócios e serviços”, afirmou Juliana Pereira, secretária nacional do consumidor, na ocasião da divulgação do texto.
Desenvolvido após dois debates públicos realizados pela internet — o primeiro em 2010 e o segundo em 2015 —, reuniões técnicas, seminários e discussões com diversos órgãos e entidades, o anteprojeto recebeu mais de 1,3 mil contribuições e pretende assegurar uma série de direitos básicos sobre os dados pessoais, armazenados em território nacional ou em centrais fora do País, dando ao cidadão controle sobre suas informações pessoais. A proposta está em análise no Ministério do Planejamento e será encaminhada à Casa Civil da Presidência da República. Com a crise política, no entanto, não há previsão para o desfecho da questão. Mas Juliana acredita que o tema será resolvido no congresso ainda neste ano.
Participante ativa das discussões, a Associação Brasileira de Marketing Direto (Abemd), considerou a atual versão um avanço em relação às anteriores. Segundo Efraim Kapulski, presidente da entidade, dentre as mudanças positivas destacam-se o novo conceito de dado pessoal (agora relacionado a uma pessoa e não a uma máquina — número de IP) e a isonomia no tratamento de dados entre o setor público e o privado. “A Abemd já tem um Código de Boas Práticas para tratamento de dados pessoais. Deveríamos tratar o tema assim como temos o Conar na publicidade. Mas a regulação é boa para todos. Sempre fomos contra leis restritivas. Devemos é cercar o mau uso”, aponta Kapulski, ressaltando que a regra de transição de 180 dias após a publicação da lei é um prazo muito curto.
“Qualquer mudança que não seja definida no timing adequado poderá ser muito prejudicial”, complementa. “A redução da privacidade é um efeito colateral de um mundo cada vez mais conectado. Quanto mais usamos a internet e dispositivos móveis e a tecnologia avança, menos privacidade temos. As gerações mais novas e as mais conectadas aparentemente acham que o benefício e a conveniência trazida pela tecnologia compensam esta queda de privacidade”, acredita Marcelo Tripoli, CCO da SapientNitro.
Segundo Eduardo Ariente, professor da faculdade de direito do Mackenzie, o anteprojeto surgiu na esteira das denúncias de Edward Snowden sobre espionagem da presidente Dilma Rousseff e da Petrobras e, apesar de não ser perfeito, representa um avanço. “Numa primeira leitura, tem umas cláusulas gerais que permitem ao governo acessar informações baseado em lei, isso é criticável. Se o anteprojeto passar, as empresas terão de adotar o Princípio do Consentimento Informado, que é a autorização expressa do usuário para o tratamento de informações sobre ele. Durante o debate no Congresso acho que vai surgir bastante discussão sobre o uso de informação das pessoas por parte do governo”, opina.
Atualmente o governo usa informações de cadastros de Bolsa Família e até do programa Farmácia Popular, e não há uma política clara sobre o que pode ou não ser feito com esses dados pessoais, segundo Ariente. “Se as associações voltadas ao marketing não veem o projeto com maus olhos, então o projeto não deve sofrer tanto boicote. Mas ainda tem muita coisa para ser debatida. Há todo o trâmite congressual, coisas que se colidem entre o Código de Defesa do Consumidor, o Marco Civil e o anteprojeto do Ministério da Justiça. Muitos setores ainda podem se sentir feridos”, ressalta o professor especializado em direitos do consumidor e privacidade digital.
Responsáveis por lidar com um gigantesco volume de dados a cada dia, as empresas de telefonia ainda estão reticentes com o teor do anteprojeto. No entendimento do Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviços Móveis Celular e Pessoal (SindiTelebrasil), a lei deveria ser mais voltada para o estabelecimento de princípios, fundamentos e direitos, sem entrar no detalhe operacional. “Muito nos preocupa o excesso de detalhamento operacional que foi inserido. Esse excesso gera uma enorme burocracia no processo de gestão do tratamento dos dados pessoais e pode vir a inviabilizar a oferta de uma grande quantidade de serviços”, afirma Alexander Castro, diretor do SindiTelebrasil. O setor também é contrário à criação de um órgão competente específico para fazer a fiscalização e gestão do tratamento de dados pessoais. “Já existem no sistema jurídico brasileiro órgãos com competência para fiscalizar a aplicação das leis vigentes que tratam de dados pessoais, incluindo o Ministério Público”, aponta.
Polarização
Tema polêmico, a privacidade divide opiniões. Segundo dados da Ipsos Connect, metade da população está preocupada com a questão e metade não. Além disso, 50% dos brasileiros acham inaceitável o acesso a dados pessoais mesmo que seja para vigilância ou segurança, enquanto outros 50% concordariam em pagar mais por um serviço ao proteger seus dados. “Na prática, apenas um quarto das pessoas faz ajuste de segurança de privacidade no browser. Mais interessante: 33% declaram que leem termos e condições de softwares e apps, mas as empresas de tecnologia apontam que esse índice é de só 1%”, diz Flavio Ferrari, diretor geral da Ipsos Connect.
As pessoas se dizem preocupadas, mas não fazem o que está ao alcance para se proteger. “Isso indica que esperam que alguém esteja cuidando e a questão acaba sendo vista pelo lado negativo, que é a privacidade. Há pontos positivos no big data coletivo. A linha que vem pautando as discussões e marcos regulatórios asseguram a privacidade e o acesso a dados impessoais, o que é bom”, analisa Ferrari, destacando que o segredo neste cenário é a honestidade e transparência da comunicação.
Esse é o argumento das empresas que trabalham com dados. Para Eduardo Bicudo, presidente da Wunderman, regulamentar é fundamental para o futuro do negócio, mas sem imposição. O objetivo deve ser conter o abuso e a rejeição. “Em virtude da fragmentação da audiência, se não tivermos dados para dialogar e criar relevância, teremos um problema sério. O pedido de permissão, usado na Europa, gera rejeição. Se me relaciono e tenho afinidade, permito que uma marca me traga novidades e ofertas. Há benefícios”, conclui.
Além do código de boas práticas da Abemd, alguns anunciantes têm se antecipado à questão e criado regras próprias para tratar os dados e se relacionar com os clientes. “A P&G pratica isso de forma seríssima. Não se relaciona com cliente que não opt-in sem deixar clara a finalidade. Deixa claro o benefício e a vantagem com o oferecimento das informações. Privacidade é sinal de respeito ao consumidor”, exemplifica Guto Cappio, presidente e CCO da Sunset. “O consumidor deixa o print de comportamento há muito tempo, antes do digital. Quando ia à loja há 20 anos com o cartão ou crediário, já deixava. Nunca incomodou porque não tinha tecnologia para trabalhar e monetizar. Isso tomou outra proporção com a tecnologia”, observa.
Reportagem publicada na edição 1692, de 11 de janeiro, exclusivamente para assinantes do Meio & Mensagem, disponível nas versões impressa e para tablets iOS e Android.
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