Meio & Mensagem
16 de junho de 2011 - 6h44
Nos idos de 1988, um então jovem curta-metragista iniciava suas tentativas como diretor de TV. Seus primeiros passos foram dados para dentro da saudosa TV Manchete, o que significava que o curta-metragista iria dirigir uma novela – ou melhor, uma novela de Glória Perez: “Carmem”. Mesmo diante desta responsabilidade, toda a emissora soava amadora, éramos um bando de curta-metragistas! Talvez persista aí a razão do meu amor pela TV Manchete, artisticamente capitaneada por ninguém menos que o romancista Carlos Heitor Cony. Nas reuniões em sua sala, Glória e eu sorvíamos comentários sempre originais sobre literatura, jornalismo, cinema, teatro e o que mais surgisse. Em poucas horas aprendia-se muito. A TV Manchete era uma escola, mas uma escola mambembe, onde todos faziam de tudo um tudo.
Na rua do Russel os diretores deveriam estar capacitados não só a dirigir as cenas, mas também a dirigir as Kombis. Adolfo Bloch – “seu Adolfo” – contracenava pelos corredores com esta alcunha doce; mas, de repente, assim que recebia a notícia de que aportara no Rio de Janeiro um navio japonês carregado de papel, algo demoníaco o tomava e, nos preterindo ao pergaminho oriental, lançava mão de algum pagamento e imediatamente descarregava os porões. O elenco ficava à porta da emissora esperando uma Kombi – que não chegava nunca, claro! – já que o pergaminho fora adquirido com o salário dos motoristas das Kombis. A solução não tardava: lotávamos nossos carros com elenco e equipe, e lá estávamos onde quer que fosse a gravação. Sabíamos tirar algum proveito do pouco que tínhamos.
E nos finais de semana, a alegria maior: cruzar o Aterro do Flamengo em direção à Cinemateca do MAM e me abraçar ao cinema do mundo inteiro. Nas segundas-feiras voltava à novela da Glória com as retinas em alvoroço, de mãos dadas com Eisenstein, Visconti, Murnau, Buñuel e, mais tarde, Tarkovski. Lembro-me da Glória perguntando “que russo é esse?”. Na época ela até podia desconhecer quem era o cineasta, mas, por outro lado, sabia [e bem] da obra completa de Balzac, Stendhal, Dostoievski e, em especial, Flaubert – apelidado carinhosamente por ela de “noveleiro”.
La Perez sempre perseguiu o folhetim. Heroína de si mesma, guiada pelo espírito da coragem, alcançou o prêmio Emmy Internacional de melhor telenovela por seu mais recente rocambole, “Caminho das Índias”. Como todo folhetim, não cabe julgamento literário, vale apenas o sentir. De Alexandre Dumas a Nelson Rodrigues, todos, sem exceção, eram dotados de incongruências em suas ações, prolongamentos, repetições e inverossimilhanças elevadas à condição de verdade. Herdeira ao mesmo tempo das linhagens clássica e contemporânea do gênero, Glória Perez segue provocando desprezos solenes e cativando espectadores inconfessos.
Não sou especialista, do pouco que conheço sobre a história do folhetim poderia apenas dizer que a novelista traça uma linha divisória – um espaço novo – entre estes dois tempos com o despudor único de mesclar vários elementos, desde os mais amplificados exageros do século XIX até os mais avançados temas – incluindo na conta a folhetinização da ciência [“Barriga de aluguel”, “O Clone”], sem falar que fundou o tão xerocado marketing social.
Ao término da novela – um dos grandes êxitos da pequena TV Manchete – Cony nos ofereceu uma viagem à Europa, com um detalhe especial: “Quando o dinheiro acabar, apareçam lá no Alfredo di Roma, vocês são meus convidados para um jantar”. E nos passou o pequeno envelope contendo um bilhete seu, redigido de próprio punho, nos apresentando ao signore Alfredo, que nos recebeu como príncipes, erguendo um brinde pelo sucesso, um sucesso que se juntou aos muitos que se seguiram, e que se estenderá ao muito que ainda há de vir, coroando definitivamente Glória Perez como Rainha legítima do Folhetim do Século XXI.
* Luiz Fernando Carvalho é diretor de núcleo da TV Globo
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