Roseani Rocha
30 de setembro de 2024 - 15h04
Nesta segunda-feira, ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que o governo tirará do ar 600 sites irregulares de bets, assim como proibir uso de cartão de crédito e de recursos do Bolsa Família para esse tipo de aposta (cred-janews-shutterstock)
Ainda em 2023, quando as apostas esportivas online, ou as chamadas “bets”, foram reguladas com a aprovação da Lei 14.790, o Instituto Locomotiva realizou uma pesquisa em que avaliava o impacto da prática de apostar sobre diferentes perfis da população brasileira. Nele, ficou claro que a parte da população com renda mais baixa era a mais propensa a gastar dinheiro com jogo.
Mas o crescimento das bets chegou ao ponto de uma entidade como a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) colocar esse fator na lista de desafios do setor no País, em evento que realizou dos dias 15 a 18 deste mês.
Além disso, esquentou esse debate a divulgação pelo Banco Central de que R$ 3 bilhões do dinheiro disponibilizado pelo governo para usuários do Bolsa Família foram parar no bolso das empresas de aposta online, no mês de agosto. Em seu artigo publicado na edição desta semana do Meio & Mensagem, Gabriela Rodrigues, vice-presidente de impacto na Soko e fundadora da Walk, ressalta que uma leitura rasa do fenômeno poderia gerar questionamento sobre a efetividade do programa social e a real necessidade desses beneficiários, já que estão usando parte do dinheiro para apostar, mas a raiz do problema, diz ela, é outra: “Quando a realidade da educação, do desemprego e da saúde não apresenta possibilidades reais de melhora e quando a confiança em governos e instituições decai a cada ano, o jeito é tentar achar uma saída com as próprias mãos. E é aí que as bets se tornam ainda mais perigosas, porque são aquelas mentirinhas que aceitamos contar para nós mesmos, já que em meio a milhares de chances de perder, há pelo menos uma chance real de ganhar”.
A propósito, nesta segunda-feira, 30, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou em entrevista que irá tirar do ar 600 sites irregulares de apostas, no mês de outubro. Além disso, também declarou que o governo vai proibir uso de cartão de crédito e do Bolsa Família para a realização desse tipo de jogo, assim como regular mais a publicidade das bets que, segundo ele, está “completamente fora de controle”.
Fato é que as bets continuam crescendo e acendendo sinais de alerta em diferentes segmentos do varejo, mesmo em um tão essencial quanto o alimentar. Tanto assim que no mês passado, a Abras soltou uma recomendação aos players do setor que evitassem contratar para suas campanhas agências e influenciadores que tenham relação com empresas de apostas esportivas online.
A seguir, Renato Meirelles, CEO do Instituto Locomotiva e um dos participantes do evento citado da Abras, explica o porquê de as bets terem se tornado um problema de negócio para outros setores e relembra alguns dos dados da pesquisa feita em 2023.
Meio & Mensagem – Quando os gastos com apostas online passaram a entrar no radar de um setor tão essencial como o varejo alimentar, sob a perspectiva de ser uma ameaça econômica? E qual a relevância dessa ameaça diante de outros pontos de atenção do segmento?
Renato Meirelles – Os gastos com apostas online começaram a ser vistos como uma ameaça, principalmente devido ao crescimento exponencial desse mercado e à forma como ele redireciona a renda das famílias. Parte do dinheiro que antes era gasto em itens essenciais, como alimentos e produtos de higiene, está sendo transferida para as apostas. O setor supermercadista, que depende muito de compras frequentes e de baixo valor, vê uma ameaça na perda de poder de compra dos consumidores. O impacto se torna ainda mais relevante ao considerar que 51% dos apostadores afirmam que o dinheiro usado nas apostas é redirecionado de outras áreas, como poupança e alimentação. Embora outros fatores, como a inflação, também sejam pontos de atenção, o aumento dos gastos com apostas cria um cenário de instabilidade no orçamento das famílias, afetando diretamente o setor de alimentos.
M&M – Pesquisas deixam claro que as bets são mais populares entre pessoas de baixa renda. Qual a importância desse público para o setor supermercadista?
Meirelles – As pessoas de baixa renda, incluindo beneficiários do Bolsa Família, são um público de extrema importância para o setor supermercadista. Esse grupo representa uma parcela significativa do consumo de produtos básicos e essenciais, como alimentos e produtos de higiene. No Brasil, as classes C, D e E são responsáveis por uma grande fatia das compras em supermercados, e qualquer alteração no comportamento de consumo dessa população, como o desvio de dinheiro para apostas, impacta diretamente as vendas no varejo. Além disso, os beneficiários do Bolsa Família têm um orçamento extremamente limitado. Quando parte desse valor é destinada às apostas, compromete-se não apenas o consumo de alimentos, mas também a segurança alimentar dessas famílias, aumentando as preocupações sociais e econômicas. Segundo o Instituto Locomotiva, 66% dos brasileiros que apostam afirmam que usaram parte de sua renda para apostar, muitas vezes tirando recursos de despesas essenciais.
M&M – Existem já pessoas defendendo que o governo restrinja a publicidade desse tipo de “serviço” ou “entretenimento” (as bets). Você considera que isso seria uma boa estratégia ou suficiente?
Meirelles – Restringir a publicidade de apostas esportivas é um passo necessário, mas não é suficiente. Assim como foi feito com a publicidade de álcool e cigarro, a restrição de propagandas pode ajudar a reduzir a influência sobre públicos vulneráveis, especialmente jovens e pessoas de baixa renda, que são os mais impactados. Nossas pesquisas indicam que 68% dos apostadores começaram a jogar influenciados por propagandas ou patrocínios. Limitar essa exposição é crucial para proteger esses grupos. No entanto, além das restrições à publicidade, é preciso que o governo implemente uma regulamentação mais rigorosa sobre as próprias plataformas de apostas, incluindo medidas de controle sobre limites de aposta, autoexclusão, e prevenção ao endividamento. É um problema complexo que exige uma resposta multifacetada, que inclua educação sobre os riscos do vício e suporte psicológico para os afetados.
M&M – No caso do impacto que as bets têm tido no orçamento dos consumidores de modo geral, o que indiretamente impacta o consumo de outras categorias (como o varejo alimentar, que tem demonstrado essa preocupação), tem algo que os players desses demais segmentos possam fazer para frear esse impacto?
Meirelles – Uma possibilidade é reforçar campanhas de educação financeira em parceria com instituições, informando os consumidores sobre a importância de manter o controle de seus gastos e priorizar despesas essenciais. Supermercados e outros players do varejo podem também adotar programas de fidelidade e promoções que ofereçam benefícios mais tangíveis e imediatos para os consumidores, competindo de forma indireta com o “glamour” das apostas e seus bônus de cashback. Além disso, empresas do setor podem pressionar por uma regulamentação mais firme junto ao governo, visando reduzir o apelo das apostas esportivas, especialmente entre os consumidores que têm maior probabilidade de desviar sua renda de compras essenciais para as apostas. Isso pode incluir advocacy para que as apostas sejam mais controladas ou até um envolvimento mais ativo em campanhas de conscientização social sobre os riscos do vício em jogos.