Novelas: 70 anos de histórias em busca de novos capítulos
Gênero de entretenimento mais popular do País celebra sete décadas com a missão de refletir e engajar a audiência
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Bárbara Sacchitiello
20 de dezembro de 2021 - 14h44
Na noite de 21 de dezembro de 1951, um ano depois de a televisão ter iniciado sua trajetória em território brasileiro, os espectadores que tinham acesso a um aparelho televisor em sua casa foram apresentados à história de amor dos personagens interpretados pela atriz Vida Alves e pelo ator Walter Foster, que também havia criado o texto e produzido o formato, até então inédito na grade brasileira.
Na TV Tupi, a história da paixão da romântica mocinha pelo galã que, a princípio, rejeitava seu amor, foi apresentada ao público duas vezes na semana, em edições de 20 minutos. Em preto e branco – e com a ousadia de ter mostrado, pela primeira vez, um beijo de amor em rede nacional – Sua Vida Me Pertence entraria para a História como a primeira obra de um gênero que completa 70 anos neste mês ainda com o poder de despertar paixões, raiva, alegria e outros sentimentos em diferentes gerações que puderam, através da dramaturgia televisiva, vivenciar as dores e delícias de histórias de outros, mas que poderiam bem ser suas.
Da trama romântica escrita, dirigida e protagonizada por Walter Foster até Verdades Secretas 2, a primeira novela brasileira criada para ser consumida sob demanda, e lançada no Globoplay neste ano, está compreendida não apenas a evolução do gênero mais popular de entretenimento televisivo como também estão registradas muitas das transformações sociais, culturais e políticas do País. Desde Beto Rockefeller, a primeira trama que espelhou o comportamento do brasileiro na tela, o público acostumou-se a ver, nos capítulos diários, muito de suas experiências, desafios e tramas refletidas naqueles personagens. E, com o passar dos anos, e a expansão da concepção a respeito da representatividade, passou a exigir que, cada vez mais, aquelas histórias espelhem suas vivências, cores e estilos e que, de acordo com a atual demanda do consumo global de conteúdo, estejam à sua disposição por diferentes plataformas.
Ainda em seu canal original, a televisão aberta, a novela é soberana em relação à preferência do público. Dados de audiência da Kantar Ibope Media, que mapeiam o consumo de conteúdo nos 15 principais mercados mensurados pelo instituto no País, mostram que, dos cinco programas de maior audiência do Brasil, três são telenovelas (e todas da Globo). Um Lugar ao Sol, atual trama da faixa das 21 horas, ocupa o topo do ranking, com média de 22,3 pontos na audiência domiciliar nacional na primeira semana de dezembro. Pelos critérios da Kantar Ibope, cada ponto de audiência, em 2021, representa um universo de 255.377 domicílios.
Esses números são bem diferentes do que as novelas costumam registrar, em termos de audiência, no passado. Em 1972, por exemplo, Selva de Pedra conseguiu, em um dia, a incrível marca de 100% de share na cidade do Rio de Janeiro. Na prática, todos os televisores que estavam ligados na cidade naquele momento, acompanhavam a trama protagonizada por Regina Duarte. Hoje, são comuns os questionamentos a respeito dos números mais baixos do gênero, bem como da competividade das histórias com as variadas opções de entretenimento que espectador tem a seu dispor – entre séries, filmes e outros programas de TV.
Gênero forte
Apesar desse contexto de maior competição pela atenção, é inegável a força das novelas em termos de alcance, popularidade e, também, de investimentos publicitários, tanto na TV como em outras telas. Prova disso é que, além da Globo, SBT e Record, que complementam o pódio das emissoras de maior audiência do País, têm novelas como um produto importante de sua programação. E o consumo do produto vem se estendendo para quem está habituado a acompanhar conteúdo em outras telas. A estreia de Verdades Secretas 2, por exemplo, conseguiu, em novembro, tornar-se o produto mais visto da história do streaming da Globo. Em 24 horas, os dez primeiros capítulos da trama ultrapassaram a marca de 1,9 milhão de horas de reprodução, de acordo com dados revelados, na época, pelo portal Notícias da TV.
“Não tenho dúvidas de que a novela é o produto da dramaturgia preferido pelo público no Brasil. É o carro-chefe de nossas produções audiovisuais, em todas as plataformas”, resume José Luiz Villamarim, diretor do gênero dramaturgia da Globo. Ser o gênero mais visto, na emissora campeã de audiência no País, é algo que, em sua visão, nenhum outro formato consegue alcançar. E isso ultrapassa a televisão. “Nas redes sociais, todos os meses, as novelas geram mais de 160 trending topics no Brasil e emplacam cerca de 40 TTs no mundo”, diz Villamarim, em relação ao termo usado nas redes sociais para distinguir as palavras que mais geram conversas entre os usuários.
Questionado a respeito das razões que ainda colocam as novelas em um patamar tão importante na mídia mesmo sete décadas após sua criação, o diretor encontra explicação na própria forma como esse gênero nasceu na TV, associado ao contexto social do Brasil. “Ao acrescentarem a imagem em vídeo às narrativas de folhetim, que já eram muito consumidas no rádio e no jornal, as novelas rapidamente se tornaram extremamente atrativas e entraram para a rotina da população como opção de diversão. Num País com problemas de distribuição de renda, com pouca atividade cultural, a novela passou a ser um lugar para as pessoas se divertirem, se encontrarem, conversarem, discutirem comportamento”, reflete.
Marcelo Silva, vice-presidente artístico da Record TV, destaca que a própria aceitação do público, que desde o início gostou de acompanhar as tramas e histórias apresentadas nos folhetins, acabou contribuindo para que o gênero alcançasse um grau de profissionalização elevado e, consequentemente, ganhasse, ao logo dos anos, ainda mais qualidade e relevância. “Desde as primeiras produções, os pioneiros que implementaram o gênero no País investiram no formato ao perceber a boa aceitação do público. Mesmo quando os recursos ainda eram precários, as novelas tinham um destaque especial. Isso criou uma geração de profissionais que levaram essas produções a outro patamar, como autores, diretores e técnicos. O Brasil destacou-se pela qualidade do produto, buscando inclusive inovação nas narrativas, na linguagem e nos recursos tecnológicos”, comenta o diretor. É por isso que, segundo ele, até hoje, as tramas brasileiras são bem aceitas inclusive internacionalmente, em mercados em que o público espectador também é bastante exigente.
A importância da novela para a mídia brasileira pode ser mensurada pelo fato de esse gênero ter, de certa forma, ajudado a construir o conceito de grade de programação. Na Globo, ainda na década de 1970, convencionou-se a distribuir as tramas em diferentes faixas de horário, intercaladas por telejornais. Aos poucos, o público começou a acostumar que, às 18h, era exibida uma novela e, na sequência, assistia ao noticiário local, seguido de outra trama. Depois, vinha o Jornal Nacional e, em seguida, a novela do horário nobre. Esse padrão, ainda que com algumas variações, permanece até hoje e acabou inspirando a grade de outras emissoras.
Ainda que o público tenha abraçado esse hábito de acompanhar os capítulos diariamente, fazer com que as pessoas continuem dedicando seu tempo, cada vez mais escasso, a acompanhar as tramas dos personagens da ficção é uma missão que requer estratégias bem embasadas, combinadas com experimentos e com a análise precisa do quê as pessoas querem – e como querem assistir. No caso da Record TV, a diretoria acredita que os maiores acertos aconteceram quando houve coragem para mudar. Há alguns anos. a emissora adotou a estratégia de usar a Bíblia como fonte inspiradora de suas produções. Marcelo Silva diz que a emissora teve a ousadia de fazer uma novela bíblica que acabou marcado a história da TV. “Desde os Dez Mandamentos (trama de 2015), essas novelas atingiram em diversos momentos a liderança de audiência no Brasil e em vários países. Recentemente, ousamos novamente, contando as histórias do primeiro livro da Bíblia, Gênesis”, pontua o executivo. A próxima novela do gênero, Reis, já está em fase de produção.
Mas não é só dos textos sagrados que vive a dramaturgia da emissora. “Entendemos que é preciso haver espaço para outras narrativas que podem abordar aspectos da vida contemporânea e que também atraem o público. Topíssima é um exemplo recente que fez tanto sucesso que o público nos cobra uma continuação. E, em 2022, a Record TV colocará no ar Todas as Garotas em Mim, uma série com tramas contemporâneas, mescladas com passagens bíblicas”, antecipa.
Novos espectadores
Se ainda a novela ainda é o gênero soberano em termos de audiência e de popularidade, muito se deve à capacidade das emissoras de acompanhar as novas demandas dos consumidores e, fazer com que aquela fórmula clássica dos capítulos diários ganhe outros olhares. Villamarim pondera que, se por um lado a explosão das séries internacionais influencia as novas formas de contar e acompanhar as histórias, atingindo inclusive a nova geração de autores, por outro, não quer dizer que essência do folhetim tenha perdido a força. “Com a chegada de novas telas, o que vemos é um fortalecimento do formato. A novela é um gênero tão relevante, líder em audiência na TV aberta e na TV paga, que não à toa os grandes players internacionais estão desembarcando na América Latina, em especial no Brasil, em busca do know-how para produzir folhetins para serem exibidos em todo o mundo”, pontua.
A fala de Villamarim encontra respaldo na declaração feita pela VP de conteúdo da Netflix no Brasil, Elisabetta Zenatti, em evento realizado pela plataforma neste mês para falar sobre suas pretensões em termos de produção nacional. A executiva disse que a empresa, que ajudou a popularizar as séries entre os brasileiros, quer, sim, produzir novelas, mas de forma um pouco diferente do que o espectador de TV aprendeu a consumir. “Não faremos a novela clássica brasileira, que dura quase o ano todo, com a qual as pessoas têm um encontro marcado todo dia, em determinado horário, e que funciona como um livro aberto, que vai se adaptando aos gostos do público”, disse Elisabetta, durante o evento. Ainda assim, a executiva deixou claro que a narrativa e os conflitos típicos dos folhetins de TV estarão presentes nas obras da plataforma de streaming.
Como serão as novelas brasileiras da Netflix
Na opinião da Globo, a novela tradicional – com capítulos diários, exibidos no mesmo horário – não deixarão de assistir. Mas a emissora acredita que a forma como elas serão consumidas mudará. A emissora tem experimentado outras linguagens, duração e formas de gravação ao longo dos últimos anos. Além da forma, há também a necessidade de atualizar o conteúdo. O diretor de gênero defende que as novelas sempre buscaram refletir os costumes brasileiros e acompanhar os avanços em termos de comportamento e pautas. “Se não olharmos ao redor, para o que está acontecendo, não temos uma boa história para contar”, diz Villamarim, acrescentando que retratar a pluralidade é uma busca constante, a frente e por trás das câmeras. “Ainda há muito a avançar e isso só potencializa nossa dramaturgia, com novos olhares, novos atores e dramaturgos”, reconhece.
Festa dos 70 anos
Para celebrar as sete décadas das novelas, a Globo preparou um especial que irá ao ar nesta terça-feira, 21, data exata em que se completam 70 anos da exibição de Sua Vida me Pertence. Com o nome de 70 Anos esta Noite, o especial reúne atores e atrizes da casa para lembrar seus personagens marcantes e falar sobre as obras que marcaram o público.
Outro projeto que envolve a celebração das novelas irá ao ar em 2022 e marca a primeira parceria da Globo com o Google em um projeto de conteúdo. Batizada de Novelei, a série, que ganhou o selo do YouTube Originals, ficará disponível nos canais da Globo e visa homenagear a história da dramaturgia da casa com remakes cômicos de passagens clássicas das tramas.
*Credito da imagem de topo: TV Globo/Acervo
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