Amanda Schnaider
16 de agosto de 2022 - 6h00
A primeira temporada da série Bom Dia, Verônica, produção brasileira da Netlix, ganhou destaque por jogar luz à questão da violência contra a mulher. Com o sucesso, a série foi renovada para a segunda temporada, que estreou no dia 3 deste mês. Logo nos primeiros dias de lançamento, a produção brasileira ficou em quarto lugar no ranking das séries de língua estrangeira (não inglesa) mais vistas na plataforma.
A série é uma adaptação do livro homônimo, dos autores Raphael Montes e Ilana Casoy, que conta a história de Verônica Torres, uma escrivã da Delegacia de Homicídios de São Paulo que, após presenciar um suicídio, passa a usar sua habilidade investigativa para ajudar mulheres desconhecidas.
Raphael Montes e Tainá Müller (Verônica) nos bastidores da série Bom Dia, Verônica, da Netflix (crédito: Divulgação)
Em entrevista ao Meio & Mensagem, Raphael Montes, que além de autor , é roteirista-chefe e produtor-executivo de Bom Dia, Verônica e de Segundas Intenções, a primeira novela da HBO Max, fala sobre como lidou com as expectativas do público em relação à segunda temporada da série da Netflix e como foi trabalhar para o serviço de streaming. O roteirista ainda comenta sobre o crescente interesse do público em histórias de crimes, sejam eles reais ou não, e sobre qual é o papel de uma obra audiovisual. Montes também fala sobre a criação de sua produtora, a Casa Montes, quais serão os seus próximos passos de sua carreira e sobre a possibilidade de uma terceira temporada de Bom Dia, Verônica. Confira a entrevista abaixo:
Meio & Mensagem – Como foi a experiência da criação do roteiro da primeira temporada e como viu o feedback do público em relação à série?
Raphael Montes – Eu venho da literatura, sou escritor de livros, mas já tinha trabalhado em televisão, fazendo uma adaptação de um livro de outro autor brasileiro que é o Luiz Alfredo Garcia Rosa, que escreveu Uma Janela de Copacabana, e virou a série Espinosa no GNT. Depois trabalhei na TV Globo, fiz uma série, uma novela (A Regra do Jogo, de João Emanuel Carneiro). Mas, até então, não tinha feito algo que fosse o criador, sempre trabalhei em projetos de outras pessoas. Especificamente criar Bom Dia, Verônica foi um desafio porque era baseado num livro que eu mesmo escrevi junto com a Ilana Casoy. Ao fazer uma adaptação necessariamente você tem que fazer modificações para que a história funcione no audiovisual. Então, foi bem desafiador distanciar o Raphael escritor, que tinha feito livro, e enxergar a história como o Raphael criador de séries. E a repercussão da primeira temporada foi muito feliz. Felizmente tivemos um grande público, que respondeu e gostou da história, e um sucesso de crítica. A crítica recebeu muito positivamente uma espécie de conjunção que fazemos de entretenimento, as minhas histórias sempre têm muito suspense, muitas viradas, muitas cenas tensas, muitas surpresas. Adoro finais surpresas, mas junto a isso tem uma espécie de denúncia social, de debate, de provocação social. Felizmente a primeira temporada conseguiu muito esse lugar. Gostei muito de ter feito a primeira temporada de Bom Dia, Verônica, mas é claro que a recepção da primeira temporada fez aumentar o desafio da segunda.
M&M – Após conhecer a série, o público geralmente começa a ter expectativas em relação à continuidade. Como lidou com essas expectativas? Isso, de alguma forma, influenciou na criação da segunda temporada?
Montes – Trabalhar em televisão é muito interessante porque temos essa conexão com o público e temos, de algum modo, a resposta do público. Na Netflix, tivemos o retorno do que as pessoas gostaram na primeira temporada e esse retorno serve, de algum modo, como uma espécie de orientação do que se espera da segunda temporada. Mas eu não acredito que eu, como autor, tenha que entregar o que o público espera. Acredito que o público gosta de ser surpreendido. Então, ainda que a segunda temporada traga muitos acontecimentos que o público espera, ou seja, traz uma Verônica mais forte investigando e mais ação, mais viradas, ao mesmo tempo que tem tudo isso, também tem todo um núcleo novo que traz muitas surpresas e puxa o tapete do público. Felizmente eu tenho visto nas redes sociais, no Twitter, no Instagram, nas críticas que tem saído no YouTube e etc, que as pessoas estão se surpreendendo, porque elas não esperavam algumas coisas. Acredito que é um equilíbrio entre fazer o que o público quer, mas também, como autor, fazer o que o público não espera, e aí surpreender.
M&M – Como você avalia a experiência de produzir uma obra para a Netflix?
Montes – É muito legal, porque, primeiro, ao longo do desenvolvimento da série, tem um processo de muito diálogo. Nós temos uma sala de roteiro, fazemos o modelo americano. Eu era o chefe da sala de roteiro, nós tínhamos equipe e, assim, levantávamos as escaletas e, depois, os roteiros. Acompanhando esse processo temos executivos da Netflix que leem todos os materiais e dão notas. Essas notas voltam para nós, fazemos reuniões para debater as notas, caso tenha alguma dúvida ou alguma discordância. E é sempre um processo de diálogo. Feito os roteiros, vamos para as filmagens. Nas filmagens há o diretor, toda a produção e também acompanho as filmagens como produtor-executivo. E acompanhar as filmagens é muito importante, porque como eu que escrevi, eu sei o que pode funcionar, o que eu acredito que está fora do tom, que está errado. Nesse último, também foi muito importante acompanhar as filmagens, os cortes depois que montamos os episódios, até que eles fiquem prontos. E quando ficar pronto é muito mágico, porque em um dia está disponível em mais 190 países. É realmente impressionante o alcance que a Netflix tem. É muito positiva a minha relação com eles, porque é uma relação de pegar histórias brasileiras, com elementos brasileiros, com autores, atores e diretores brasileiros, tudo com a nossa cara e levar para o mundo inteiro. Isso é muito forte.
M&M – Bom Dia, Verônica é uma série que aborda questões de violência contra a mulher. De forma geral, o interesse por assuntos de crimes, sejam eles reais ou de ficção, tem crescido. Por que o público tem se interessado tanto por essa temática?
Montes – Eu sempre gostei de histórias de crime. Antes de ser um autor de histórias de crime, tanto nos livros como na televisão, sou um leitor e espectador dessas histórias desde a minha adolescência. E o meu interesse, e, acredito, o de todo mundo, é compreender a mente humana, entender porque as pessoas fazem o que fazem, porque são como são. De algum modo, assistir ou ler histórias de crime revela muito sobre o ser humano, mas também revela sobre a sociedade em que vivemos. Nós do Brasil, infelizmente, vivemos numa sociedade de muita impunidade, de muita injustiça. Então, contar uma história policial, em que você tem uma personagem que luta por justiça e que enfrenta todo um sistema burocrático e inerte é muito forte para todos nós. É por isso que acredito gera esse interesse. Além de, claro, a história trazer surpresas. As pessoas que assistem à Bom Dia, Verônica, em geral, dizem que maratonam. Mas, para além destes cursos narrativos, que são para que a pessoa não pare de ver, acredito que tem um tema que mexe muito com todos nós que é: como fazer justiça em um país abandonado de algum modo? Como lutar contra um sistema que não funciona? Como despertar? Daí vem o título Bom Dia, Verônica. Que vem desse despertar da Verônica para esse mundo.
M&M – Você acredita que é função de uma obra audiovisual alertar o público ou proporcionar reflexões sobre assuntos que fazem parte do cotidiano?
Montes – Eu não acredito que obras audiovisuais tenham que ser didáticas ou moralistas. Mas acredito que o audiovisual tem um potencial de alcance muito grande. Uma narrativa, uma história, primeiro atinge muitas pessoas, porque o número de pessoas que assistem a um programa na Netflix é muito grande. Atingimos muitas pessoas e atingimos num lugar muito íntimo que é o da emoção. A dramaturgia trabalha com emoção. Estamos atingindo muitas pessoas, no seu lugar mais íntimo, o que faz com que a pessoa, eventualmente, repense algumas coisas. É um desperdício só contar uma boa história. Além de contar uma boa história, acredito que é importante, sim, propor debates, propor provocações, lançar discussões, alertar sobre situações, mas nunca numa maneira didática ou moralista, nunca falando ‘isso tem que ser feito, aquilo tem que ser feito’, mas no sentido de ‘olhe como é o sistema’. Sem querer dar spoiler, o que acontece com a Janete na primeira temporada é um soco no estômago, porque é para o público pensar e falar ‘olha, isso que acontece aqui na dramaturgia é o que acontece todo dia na vida real’. Acredito que cabe, sim, às séries de televisão, além de entreter, provocar reflexões.
M&M – Em meio ao processo de criação da segunda temporada, você abriu sua produtora. Por que achou importante criar a empresa neste momento?
Montes – A Casa Montes, que a minha produtora de desenvolvimento, nasce de uma vontade minha de contar histórias. Eu sou um artista muito inquieto, tenho muitas ideias, tanto que tenho seis livros publicados e fui fazer televisão, e tenho filmes também. Essa minha vontade de contar histórias me fez criar essa produtora, que é um modelo que existe nos Estados Unidos, em que se tem um artista, um criador que envelopa projetos, que desenvolve projetos para cinema e para televisão que tenham a sua identidade autoral. Desde os livros tenho feito projetos que acredito que tenham a minha cara, ou seja, que acredito que o público quando veja, me reconheça. No Brasil, temos muito isso nas últimas décadas, nos autores de televisão de novela. Você vê uma novela da Glória Peres, sabe que é da Gloria Peres, diferente de uma novela do Manoel Carlos, que é diferente de uma novela do Silvio de Abreu. São novelas diferentes, porque cada uma tem uma cara específica, que é a do seu autor. Com os livros, eu desenvolvi essa espécie de “cara”, de marca autoral, que são histórias de suspense, com muita virada, muito muita surpresa, em geral, com o final de cair o queixo, com personagens complexos e com histórias que dialogam, de algum modo, com provocações da nossa sociedade. No Bom Dia, Verônica, eu também criei essa marca autoral e eu tinha outros muitos projetos que queria fazer, então decidi criar essa produtora para justamente poder desenvolver projetos junto aos players do mercado, ou seja, não só a Netflix, mas também a HBO Max, a Amazon, a Globoplay, a própria Globo, a Disney, o Star+. Temos alguns lugares para contar história e assim eu espero conseguir contar mais histórias que tragam a minha cara.
M&M – Você também está trabalhando na escrita de uma novela e está relançando o livro Bom Dia, Verônica. Quais são as principais diferenças em contar histórias em diferentes formatos?
Montes – Para mim a grande delícia de trabalhar em vários formatos é justamente entender essas diferenças, porque são muitas. Enquanto a literatura tem ferramentas que são muito específicas da literatura, sejam a palavra, o narrador, o ponto de vista, o audiovisual tem outras ferramentas, como a montagem, o ator, a música. Para se fazer suspense num livro, o ritmo das palavras precisa criar um suspense, para fazer suspense numa série, é preciso de uma música que suspense que entra na fila de suspense. Os próprios elementos para criar sensações no espectador ou no leitor são diferentes. Por isso que gosto de experimentar tanto: venho da literatura, fiz série, fiz cinema, agora, estou fazendo uma novela, que é algo novo, é um formato longo. A novela da HBO Max tem quarenta capítulos. Tenho flertado com a ideia de fazer áudio, já que temos agora essa grande tendência de podcasts. Então, todos esses formatos novos me interessam porque a função é sempre a mesma, objetivo é sempre o mesmo: contar uma boa história. Agora, a maneira de contar uma boa história varia entre cada um dos formatos.
M&M – Onde busca inspiração para os personagens e as histórias que você cria?
Montes – Da vida. Acredito muito na ideia do escritor que vive no mundo. Eu, pessoalmente, gosto muito de conhecer pessoas, de conhecer lugares, de ouvir histórias, ou seja, costumo brincar com o criador, o autor de histórias, o contador de histórias está trabalhando o tempo inteiro, porque não tem isso ‘agora eu parei de trabalhar’. Você para de trabalhar e vai para um jantar, e ali conhece alguém que te dá uma ideia para uma história, ao juntar com algo que você já estava pensando. O que eu faço, além de viver a vida e estar atento a isso, é ir juntando, em geral num bloco de notas, os meus incômodos, as minhas decepções, histórias ou personagens que me interessam pensar mais sobre eles ou investigar como eles são, como eles pensam. E é curioso porque, em geral, investigar uma personagem não significa que eu concorde com ela. É bem comum, na verdade, que eu queria contar uma história de uma personagem da qual eu discorde completamente. Mas justamente o meu interesse é tentar enxergar como ela. Daí o desafio de vestir a camisa de outra pessoa totalmente diferente de mim, às vezes até oposta a mim, mas praticando esse exercício que é o exercício da criação.
M&M – Pode falar sobre seus próximos trabalhos? Bom Dia, Verônica terá uma terceira temporada?
Montes – Neste momento, estou terminando de escrever Segundas Intenções, que é a novela da HBO Max, de 40 capítulos. Estou nos últimos capítulos, então espero que em breve comecemos a produção e a novela chegue para o público. Além disso, estou desenvolvendo projetos para Casa Montes, entre eles uma franquia de filmes de terror e uma série policial, bem tradicional, estilo Agatha Christie. Na literatura, tenho um livro juvenil que deve sair no ano que vem. E um livro adulto que se chama Os Vizinhos. Além disso, aguardo com muita expectativa o sucesso de Bom Dia, Verônica, para que tenhamos a terceira temporada. É muito importante que as pessoas maratonem, indiquem para os amigos, comentem, cobrem da Netflix a próxima temporada, porque é só assim que vamos conseguir uma renovação, que deve vir nas próximas semanas. Por enquanto, não posso prometer a terceira temporada, mas posso dizer que estou pronto para escrevê-la.