4 de maio de 2020 - 12h54
Por Karina Balan Julio e Renato Rogenski
Seja por influência de novos comportamentos e demandas sociais, seja pelo potencial midiático de artistas da nova geração, é fato que o gênero musical rap nunca experimentou tanta proximidade e sintonia com meios de comunicação, marcas e publicidade. Em 2019, por exemplo, o clipe Bluesman, criado pela AKQA para o rapper baiano Baco Exu dos Blues, subiu ao palco mais tradicional do mercado publicitário. O filme recebeu no Cannes Lions o Grand Prix da categoria Entertainment for Music.
No mesmo ano, no Brasil, dois outros cases ganharam projeção e prêmios, incluindo o Effie Awards: “Motoboy é verbo de ligação”, criado pela Suno United Creators junto com Emicida, para o iFood, e “Verde é a cor da inveja”, desenvolvido pela Bullet com cocriação de Rincon Sapiência, para a Puma. Na avaliação de Vithor Reis, editor de música do Deezer no Brasil, muito além de um estilo musical, o rap representa um movimento urbano gigantesco, o que para muitas marcas pode ser considerado algo estratégico, um posicionamento quase político, sobretudo para uma audiência jovem e antenada.
Bluesman, criado pela AKQA para o rapper baiano Baco Exu dos Blues, conquistou o GP da categoria Entertainment for Music, em Cannes 2019
Mas nem sempre foi assim. Entre os anos 1980 e 1990, mídia, anunciantes e artistas do gênero tinham mútuas ressalvas para estabelecer parcerias consistentes. Tendo o grupo Racionais MC’s como maior expoente, a cena musical nasceu no Brasil vinculada a bandeiras muito claras, e buscou se posicionar como uma voz contundente para dar luz às diferenças sociais. Para se fazer ouvir, os artistas adotaram uma postura rígida, rejeitando os signos estabelecidos pelo status quo e aparições midiáticas convencionais, que não se encaixavam na estética e propósito do movimento.
Grande parte da mídia e dos anunciantes, por sua vez, ainda marginalizava a estética do gênero e preferia passar longe de se posicionar sobre questões sociais. Para Guilherme Figueiredo, diretor de marketing e digital da Som Livre, havia uma clara desconexão entre os objetivos do rap e os espaços disponíveis nos veículos mais tradicionais, que buscavam apenas entreter por meio da música. O mesmo acontecia com as marcas. “Por isso, é justo que os rappers não tenham abaixado a guarda. Com o crescimento do segmento, maiores audiências e a pressão da sociedade para que pautas mais críticas fossem tratadas, a presença nas grades aumenta e a participação na grande mídia se torna um caminho natural e necessário”, analisa.
Para o rapper Evandro Fióti, também CEO e fundador da Laboratório Fantasma, apesar de ter criado naturalmente um distanciamento em termos de projeção, essa postura mais intransigente encontrada nos artistas da velha escola foi essencial para dar credibilidade ao gênero, hoje consolidado em sua visão como “uma plataforma de comunicação pautada no Brasil”. Fióti também observa que as transformações sociais dos últimos anos ligaram um alerta para as marcas, que se viram obrigadas a incluir o que as novas gerações acreditam dentro de seus ambientes de negócio.
As marcas têm levado o rap em consideração não somente para as campanhas de conversão, mas também para a narrativa em formatos como o branded content, com o objetivo de reafirmar valores e fidelizar o público. “Não se trata mais apenas de comprar um produto e consumir. E nisso, também, o rap ocupa um espaço muito importante. Ele tem uma potência em termos de mensagem que nem sempre os outros gêneros são capazes de oferecer. O rap fala há muito tempo de questões que apenas agora estão chegando aos debates mais populares”, avalia Fióti.
Furando a bolha
Rapper Rico Dalassam foi convidado pela TNT para falar de homofobia em minidocumentário
Assim como qualquer tribo, a cena do rap tem um perfil hegemônico de integrantes. Historicamente, o ritmo foi protagonizado por artistas do eixo Sudeste, homens e heterossexuais. Artistas também periféricos, mas com outros perfis, têm conquistado espaço com ajuda das redes sociais e da própria comunidade do rap. Mulheres, pessoas LGBTQ+ e artistas de regiões diversas do Brasil passaram a se apropriar do ritmo para expressar suas dores, conquistas e identidades. Grupos e artistas emergentes como Quebrada Queer, Rico Dalassam e Linn da Quebrada desafiam o status quo ao cantar sobre liberdade sexual e condenar comportamentos homofóbicos e preconceituosos.
As mulheres da cena, por sua vez, saíram de posições de apoio e ganharam protagonismo nos palcos. A produtora Eliane Dias, da Boogie Naipe, há anos tenta aproximar mulheres do rap ao trazer mulheres DJs e MCs para se apresentarem antes dos shows dos RacionaisMC’s. “No passado, mulheres tinham que vestir calças largas e regata para serem aceitas. Cantavam coisas parecidas com as que homens cantavam, mesmo tendo outras necessidades. As artistas, hoje, já conseguem ser elas mesmas: cantam com suas roupas, maquiagens, unhas feitas e falam das suas necessidades”, analisa.
O movimento que despontou com rappers como Negra Li (leia entrevista abaixo) e Dina Di, falecida em 2010, ecoa na voz de artistas como Karol Conka, Preta Rara, Flora Matos e Drik Barbosa. E ainda há muito a ser feito pelas mulheres do rap. “A grande dificuldade da mulher rapper é se dedicar 100% à sua carreira. Homens frequentemente largam tudo e vão viver seu sonho, e a mulher geralmente não tem essa possibilidade, seja porque tem filho para cuidar sozinha, casa e aluguel para dar conta”, pondera Eliane. Paralelamente, artistas de fora do eixo Sudeste também vêm despontando nacionalmente, como Djonga, de Belo Horizonte, e o rapper baiano Baco Exu do Blues.
Flow publicitário
“Tô tão bem nas esquinas que a Intel patrocina. E nem sei o que tem a ver processador e rima”. Em 2011, Emicida utilizou essa retórica em uma de suas músicas para expressar que, após tantos anos de esforço, o seu trabalho finalmente estava abrindo espaços antes não convencionais para o rap. Apesar da letra, no entanto, o artista já sabia tanto quanto o anunciante qual era a sinergia existente entre a sua capacidade de processar informações e transformá-las em música e o componente tecnológico da Intel.
Alguns meses antes da gravação dessa faixa do disco Doozicabraba e a Revolução Silenciosa, o rapper participou do experimento #EmicidaCreators, desenvolvido pela então DM9DDB para a empresa de tecnologia. A ação consistiu em monitorar as atividades cerebrais do artista, enquanto ele improvisava rimas usando palavras encaminhadas pelo público por tweets, em um show ao vivo. Transformado em videoclipe, o case serviu não apenas para promover o evento “The Creators Project”, parceria da Intel com a Vice, como começou a abrir novas perspectivas para uma relação mais próxima entre o estilo musical e a publicidade, impulsionada por uma geração de artistas mais aberta a experimentações mercadológicas do gênero.
Emicida e Fióti no videoclipe de Rap do Motoboy, criado em parceria com a Suno para o iFood
Há dois pontos cruciais que podem pautar o rap nacional como um dos gêneros mais utilizados na publicidade nos últimos tempos, na opinião de Daniel Groove, diretor de criação da Y&R. O primeiro é o alcance midiático do estilo, impulsionado por um número crescente de rappers de expressão, além de shows e festivais do gênero. O segundo é o posicionamento do rap como um retrato da cultura de rua, com discursos e ações socialmente contundentes e relevantes. “As marcas sempre estão em busca de uma identidade musical que ajude a representar seus valores. O rap traz a verdade e um propósito claro em suas letras. Esse contexto enriquece a conexão com empresas em um momento em que o público pede personalidade e posicionamento por parte delas”, explica Groove.
Como exemplo dessa sinergia, o publicitário cita a campanha “Corrente da resistência”, criada em 2017 pela Y&R para a TNT. O trabalho de comunicação resultou em seis minidocumentários que levantavam questões como racismo, desigualdade social, padrões de beleza, mobilidade urbana, depressão e homofobia. Para este último tema, agência e marca convidaram Rico Dalassam, um dos únicos, senão o único, rapper assumidamente homossexual do País. “TNT é uma marca que tem em seu DNA a cultura urbana. É natural que o rap e o hip hop deem o norte de nossas campanhas. Para todos os assuntos, as histórias eram escritas pelos próprios protagonistas, então desenvolver aquele roteiro foi um processo de aprendizado enorme”, recorda.
O crescimento do rap na publicidade também coincidiu com um período de intensa transformação social no Brasil, com empoderamento de minorias e a ascensão de públicos que até então não eram representados. Para Mentor Neto, CCO da Bullet, mais do que apenas nomes de sucesso pop, artistas como Racionais, Emicida, Rincon Sapiência e Haikaiss são porta-vozes de uma geração de jovens, principalmente da periferia, mas também da classe média e média alta dos centros urbanos. Nessa linha, segundo o publicitário, o gênero é uma espécie de música-manifesto, que fala com seu público de forma muito semelhante aos nomes que se consagraram nos festivais de música durante a ditadura.
“Assim, valer-se do rap empresta para as marcas uma característica muito difícil de conseguir em outros gêneros: autenticidade. E por falar em influencers, também na música o público confia em seus ídolos, o que entrega à marca e às campanhas o sentimento de verdade junto ao seu público”, argumenta Mentor. Utilizando esse poder de comunicação, em 2019, a Bullet convidou Rincon Sapiência para cocriar a campanha “Verde é a cor da inveja” para a Puma. Para lançar a camisa do Palmeiras, patrocinado pela marca, o rapper narrou a história de redenção do time, que culminou no título brasileiro de 2018.
Neste novo momento de sintonia entra o rap e as marcas, vale observar que não apenas as parcerias se tornaram mais recorrentes, como ganharam novos contornos e perspectivas. Quando agências e anunciantes optam pela figura de um rapper, quase que invariavelmente têm em mãos também a possibilidade de utilizar esse garoto-propaganda não somente para seguir roteiros e explorar a força de sua presença, como, principalmente, para cocriar a narrativa.
“Os rappers são mestres em contar histórias carregadas de verdade, de um jeito versátil, e sabem se posicionar em relação aos temas do nosso tempo. Essa habilidade de storytelling, somada à credibilidade que eles trazem é um jeito eficaz de traduzir uma história de marca para as massas, com uma linguagem crível e mais próxima do que a da publicidade tradicional”, acredita Luiz Mastropietro, diretor de criação da CuboCC.
Gabriel, o Pensador e Jade Baraldo na reileitura de Lôraburra, hit dos anos 1990
Como exemplo, o publicitário cita o projeto que a agência criou para O Boticário, no ano passado, que juntou o rapper Gabriel, o Pensador e a cantora Jade Baraldo para uma releitura da música Lôraburra, um polêmico sucesso dos anos 1990. Para não descolar o discurso da ação, como costuma ser uma característica pregada pelo rap, além do autor, a nova versão, que traz uma visão feminina e em prol da diversidade, contou com um time majoritariamente liderado por mulheres em sua criação e produção, incluindo a consultoria do coletivo feminino Hysteria.
Com essa evolução narrativa, é possível dizer que os anunciantes já estão muito mais preparados para entender como aproveitar a sintonia entre artistas e marcas. Mas o contrário também acontece, na visão de Mentor Neto. A indústria do rap se profissionalizou por entender que a publicidade poderia ser uma ferramenta de difusão do gênero, desde que o diálogo entre produtores de conteúdo e marcas estabelecesse uma relação mais profissional. “É fácil perceber que essa profissionalização ocorreu sem trair o movimento, como já aconteceu no passado com outros estilos musicais. Marcas e rappers estão maduros o suficiente para preservar as características que tornam o gênero tão honesto com seu público e tão valioso para as marcas”, acredita.
Voz ressonante
Na estrada há mais de 20 anos, a cantora Negra Li fala sobre o amadurecimento do rap como indústria, os desafios para artistas de gênero e a presença de mulheres na cena.
Meio & Mensagem — Qual é sua análise do amadurecimento do hip hop? Diria que o gênero ficou mais comercial?
Negra Li — Entrei nessa cultura há mais de 20 anos, em 1996, para ser mais exata, e de lá para cá vi várias fases do rap. O hip hop nasceu da batida, para fazer as pessoas dançarem. Acho que o hip hop não foi feito só para discursos politizados, mas para mexer com a autoestima do negro na periferia, para fazer com que ele se sentisse parte da sociedade. O ritmo nasceu numa época em que as periferias eram muito abandonadas. O estilo ficou mais comercial, sim, mais bem aceito. Quando comecei a cantar rap, era muito marginalizado. Meu pai soube que eu cantava rap e na época falou que isso não ia dar em nada. É muito gratificante a evolução do rap. Sempre torci para que pudéssemos vender, para que fôssemos vistos como estrelas e o rap fosse reconhecido como cultura e estivesse presente nos prêmios. É isso que temos buscado em todos esses anos.
M&M — Acredita que é mais fácil promover seu trabalho hoje, considerando mídias e plataformas digitais?
Negra Li — É mais fácil promover o trabalho de qualquer pessoa, mas não deixa de ser desafiador porque é uma era totalmente diferente de quando se dependia de uma gravadora grande ou de ter seu trabalho tocando em uma rádio. Gosto do momento que estamos vivendo, da liberdade de poder divulgar seu próprio trabalho, de ter espaço na internet, fazer coisas independentes e fazer seu trabalho vingar. Curtidas no YouTube, por exemplo, podem ajudar a colocar seu trabalho para frente.
M&M — Você sempre foi uma das referências femininas na cena do rap. Como está a presença de mulheres atualmente?
Negra Li — As mulheres, hoje, são muito mais independentes. Na minha época, quando comecei a cantar, as mulheres eram dependentes de homens para poder subir aos palcos, gravar e mostrar seu trabalho. Eu, por exemplo, tive o RZO que me deu a oportunidade de fazer parte do grupo. Quando comecei, me disseram que eu não poderia usar saia no palco. Como era mulher em um grupo de homens, precisava seguir regras: não usava saia, não cumprimentava homem com beijo, não sorria muito. Tudo isso era para me preservar, porque me falavam que essa era a atitude correta dentro do rap. Hoje, as mulheres não dão satisfação, fazem o que querem e dominam os palcos e as gravações, e isso é muito bom. A mulher tem muito o que falar, e um rap feito por uma mulher é interessantíssimo.
M&M — Quais são as principais dificuldades para artistas do rap?
Negra Li — Acho que a maior dificuldade é em relação a shows. As maiores oportunidades para se apresentar são em baladas e boates, e ainda é muito difícil estarmos em festivais e grandes shows. Dentro do Rock in Rio, por exemplo, ainda temos um espaço muito pequeno, e no palco principal é raro você ver uma atração de hip hop. Quem conseguiu esse efeito foi o funk, com artistas como Ludmilla e Anitta que levaram o estilo para outro patamar. Mas o hip hop está no caminho.
M&M — Como vê o crescimento de rappers e do rap em campanhas de marcas?
Negra Li — Sabe aquela frase dos Racionais, “contrariando as estatísticas”? O hip hop é, por si só, uma resistência, e estar em lugares onde não pertence já é um ato político. Sou muito a favor de que a cultura hip hop esteja presente em todos os lugares: campanhas, outdoors e festivais. Precisamos ser vistos, ganhar nosso dinheiro, crescer e fazer as pessoas da periferia acreditarem que podem ganhar dinheiro.
Batida plural
Minimalista em sua forma, o rap é essencialmente composto pelo beat eletrônico e pela voz. A profissionalização do ritmo, porém, alavancou uma série de novas vertentes e estimulou o flerte com ritmos comerciais de forma mais frequente. “A musicalidade do rap está em outros gêneros e isso ajuda a trazer novos públicos”, analisa Arthur Fitzgibbon, diretor da desenvolvedora digital OneRPM. A empresa tem no rap a sua principal aposta, cuidando da distribuição de conteúdo de artistas como Djonga, Tássia Reis e Linn da Quebrada.
Subgêneros contemporâneos como o rap romântico, o acústico e o trap, que mescla música eletrônica e hip hop, dão nova roupagem ao gênero que um dia foi mais cru e invariavelmente politizado. Ao mesmo tempo, rappers consagrados estão cada vez mais unindo o rap a gêneros populares, como têm feito Emicida e Criolo ao trazerem elementos de MPB e samba a seus trabalhos.
A temática da ostentação, tão presente no funk, está migrando para o rap. “O rap não é apenas música, mas também estética e lifestyle. O trap, por exemplo, é uma vertente mais próxima do funk e mais distante do ativismo. Para os artistas de trap, a identidade está mais na forma como se comportam e se vestem, e não tanto no discurso”, exemplifica Kaire Jorge, produtor da Boogie Naipe, gravadora e produtora responsável pelo grupo Racionais MC’s e outros talentos do gênero.
A valorização e o empoderamento pelo dinheiro, aliás, é tema que perpassa o trabalho de diversos artistas brasileiros nos últimos anos. A tendência vem sendo encabeçada pelos rappers americanos desde os anos 2000 — com suas correntes de ouro e carros de luxo. “Se olharmos lá fora, grifes como Chanel e Louis Vuitton têm rappers como embaixadores de marca e acredito que isso também começará a acontecer no Brasil”, projeta Arthur.
A maior diversidade temática, para além dos trabalhos politizados, é interessante para tornar o ritmo mais vendável como produto, na avaliação de Eliane Dias, também produtora da Boogie Naipe. Ela acredita que ainda há certa pressão para que rappers falem, necessariamente, sobre problemas sociais e combate a preconceitos. “Não acho que o rap deva perder sua identidade ativista, mas queria que pudesse ser mais leve e ser simplesmente obra de arte: a música pela música”, opina. Segundo Eliane, a carga política às vezes dificulta a venda de shows e a distribuição de artistas de rap para além de seus nichos, principalmente no contexto atual de polarização e saturação de informações negativas.
Fatima Pissarra, diretora-geral da agência Mynd, conta ainda que um dos desafios para o desenvolvimento comercial de rappers é o de que a verba disponibilizada por marcas para eles costuma ser, em geral, menor do que para artistas de outros estilos.“Ainda é um gênero muito nichado, mas, para as marcas, pode ser interessante se associar ao rap justamente por ser um estilo conceitual”, analisa. Na Mynd, os artistas do gênero são responsáveis por apenas 2% do volume de projetos com marcas. A agência é esponsável pela estratégia de carreira dos rappers Hungria, Negra Li e Mc Soffia.
Eliane Dias e Kaire Jorge, da produtora Boogie Naipe: maior diversidade temática, indo além dos trabalhos politizados, amplia o interessante comercial e a audiência do rap
Distribuição ampliada
Marginalizados até meados dos anos 2000, os artistas de rap tiveram sua voz significativamente ampliada pelas plataformas digitais e redes sociais, que permitiram a maior distribuição de seu trabalho de forma independente. “O que era um movimento local e estigmatizado, passou a alcançar audiências geograficamente distantes, ganhando alcance nacional”, analisa Guilherme Figueiredo, diretor de marketing e digital da Som Livre. Para os artistas, essa evolução também abriu espaço para novos modelos econômicos e o diálogo com grandes players de mídia e festivais, antes restritos ao mainstream.
Aos poucos, festivais como o Rock in Rio e Lollapalooza abriram espaço para grupos e artistas de rap em sua programação. Este último, por exemplo, havia escalado para a edição de 2020 os rappers Djonga, Emicida, Filipe Ret e Haikaiss. Em menor escala, ganham espaço festivais de nicho como o Cena e Sons da Rua, em São Paulo, e o Rep Festival, no Rio de Janeiro.
O fortalecimento de selos especializados em hip hop, entre eles Laboratório Fantasma, Pineapple Storm e Blakkstar, também é prova da expansão do ritmo no Brasil. “Essas produtoras representam hoje o que a Furacão 2000 e o DJ Marlboro representaram para o funk carioca nos anos 1990”, compara o diretor da Som Livre.
Com negócios diversificados, as produtoras de rap se dedicam ao agenciamento de artistas, produção musical, eventos e licenciamento de produtos. A carioca Pineapple Storm, por exemplo, nasceu em 2015 como uma marca de roupas focada na cultura hip hop e depois se fundiu à produtora Brainstorm Studio, passando a atuar como marca, estúdio e produtora audiovisual. Seu canal no YouTube, Pineapple Storm TV, tem mais de seis milhões de inscritos, sendo um dos maiores do gênero no País. O canal agrega clipes e programas protagonizados por artistas emergentes.
Em sentido horário: o grupo de hip hop Haikaiss, a rapper paulistana Bivolt, o rapper Filipe Ret e Edi Rock, integrante da seminal Racionais MC’s
O objetivo em longo prazo, segundo Paulo Alvarez, fundador da Pineapple Storm, é fazer da produtora uma espécie de Kondzilla do rap. “Ainda estamos longe de competir com qualquer outra empresa de música do mainstream, mas nosso objetivo é chegar lá”, projeta Paulo. A Pineapple Storm também aposta em eventos presenciais como batalhas de MCs, encontros onde rappers são chamados ao palco para rimar em estilo livre. O público-alvo vai de jovens adultos até adolescentes de 12 a 15 anos. “O rap está crescendo muito entre o público mais jovem”, justifica.
Os irmãos Emicida e Fióti, quando criaram a Lab Fantasma, também pensavam em elevar o gênero a outro patamar. “O rap precisava fazer negócios grandes, e tivemos possibilidades que a geração anterior não teve, de incluir tecnologia e movimentos pulsantes no trabalho”, afirma Fióti. Além de prestar serviços a artistas, a marca teve aparições importantes no mercado de moda, como quando fez um cobranding com a C&A em 2018 e desfiles na São Paulo Fashion Week.
Individualmente, artistas também buscam se profissionalizar com a ajuda de agências e players digitais, seja para entender a composição demográfica de seu público, estudar potenciais marcas parceiras e melhorar a estratégia de divulgação. “Os rappers, hoje, se preocupam não só com o seu trabalho, mas como o mercado vai aceitá-lo. Um dos desafios é manter a qualidade da audiência do artista, em termos de engajamento, e não só a quantidade”, analisa Fitzgibbon, da OneRPM. Para ganhar espaço além do nicho, é necessário olhar para aspectos como otimização do conteúdo no YouTube, posicionamento em playlist de plataformas e o ciclo de vida das músicas e clipes no digital.
Manter o engajamento também significa posicionar rappers como formadores de opinião nas redes sociais, e não só através da música. Até mesmo os integrantes dos Racionais, com 30 anos de estrada, precisaram se adaptar às ferramentas digitais. “Eles, hoje, se vendem e ampliam seu alcance conversando diretamente com os fãs pelo celular. Temos que trabalhar muito com vídeos, fotos e ferramentas que temos na mão”, explica Kaire Jorge, da Boogie Naipe.
Embalo do som
Além dos quatro capítulos que serão publicados no jornal Meio & Mensagem a partir desta edição, o projeto especial Music & Branding inclui uma série em vídeo com quatro episódios. A primeira produção aborda as ações para a popularização da música clássica.