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2050: o ano do fim dos Leões de Cannes

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Opinião

2050: o ano do fim dos Leões de Cannes

Para cada Malala no palco, tivemos milhares de campanhas criadas sem mulheres na ficha. Para cada ação do Greenpeace, tivemos centenas de indústrias vilãs sendo premiadas como criativas sem terem feito nada para deixar de ser parte do problema. Para cada Preto Zezé visitando Cannes pela primeira vez, uma carta teve que ser escrita para pressionar Cannes a ser menos branca e elitista


4 de julho de 2022 - 15h00

Crédito: Divulgação

Um leão e uma girafa competiam para ver quem era mais poderoso.

O leão, confiante, mostrou seu rugido, capaz de ser ouvido a oito quilômetros de distância. Mas a girafa, sabendo que não tinha cordas vocais, esticou o pescoço e olhou para o horizonte, enxergando as reais necessidades do mundo.

Essa poderia ser uma fábula sobre Cannes, um festival que tem sido forçado a entender que não adianta criar campanhas com as maiores verbas do mundo, mas sem relevância cultural. Que não é suficiente pensar mensagens criativas sem assumir que elas fazem parte de um mundo em crise. Que não adianta rugido sem visão.

Desculpe decepcionar. Mas, se você espera um texto sobre leões, melhor saber que minha análise sobre o 69o Festival de Criatividade será sobre as girafas.

Logo nos primeiros dias, o evento foi surpreendido pelo ativismo de Gustav Martner, head de criatividade do Greenpeace, que subiu no palco para devolver um Leão que havia recebido anos atrás, quando ainda trabalhava em uma agência de publicidade. No palco, ele expôs um cartaz mostrando que “não existirá prêmios em um planeta morto”. Verdade dura. Nos dias seguintes, mais ações do Greenpeace chegaram ao Palais para chamar a atenção para a campanha #Ban-FossilAds, que pede o fim da publicidade de empresas que utilizam combustíveis fósseis, como as fabricantes de veículos e companhias aéreas.

Na quinta-feira, Malala subiu no palco. Com apenas 24 anos, a ativista paquistanesa e a pessoa mais nova a ganhar um prêmio Nobel no mundo, foi direta quando lembrou que as tradições não nasceram sozinhas e que, assim como elas foram criadas por nós, também cabe a nós mudá-las. Que todas as pautas identitárias, como racismo, homofobia e feminismo existem para lembrar que precisamos de justiça, porque o mundo não é justo para a maior parte das pessoas. E que nós todos temos muita responsabilidade quando criamos uma história, seja ela de marca ou não, porque a história tem o poder de fazer as pessoas sonharem. E os sonhos movimentam o mundo.

O Brasil não ficou de fora. Tivemos nossos ouros com a presença de Edu Lyra, fundador e CEO da Gerando Falcões, de Preto Zezé, presidente da CUFA Brasil, e de Kondzilla, um dos principais responsáveis pelo sucesso do funk brasileiro. Vimos, ainda, duas mulheres negras brasileiras ocupando um dos palcos oficiais do evento pela primeira vez em quase 70 anos para cobrar mais presença de profissionais negros em Cannes.

O que todas essas pessoas têm em comum? São todos(as) um pouco girafas, enxergando além do óbvio e fazendo algo que realmente nunca foi feito. Inovadoras porque, antes de rugir suas ideias, entendem as reais necessidades do mundo.

Elas estiveram presentes nos dias de festival, mas ainda foi pouco. Para cada Malala no palco, tivemos milhares de campanhas criadas sem mulheres na ficha. Para cada ação do Greenpeace, tivemos centenas de indústrias vilãs sendo premiadas como criativas sem terem feito nada para deixar de ser parte do problema. Para cada Preto Zezé visitando Cannes pela primeira vez, uma carta teve que ser escrita para pressionar Cannes a ser menos branca e elitista.

O mais curioso é que, este ano, me tornei parte do que o festival chama de “Global Growth Council”, um conselho que reúne mais ou menos 25 pessoas do mundo para pensarem o futuro de Cannes. Nele, me vi conversando com os maiores CMOs (chief marketing officers) do mundo sobre como nosso mercado pode aproximar mais a performance da criatividade. Bem, minha resposta pode não ser a única possível, mas ela é direta e curta: deixando de fingir que problemas não existem e endereçando com profundidade as questões sociais e ambientais que hoje ainda não são assuntos prioritários. A profundidade constrói relevância, que aumenta a performance da comunicação e melhora a qualidade dos Leões. Ponto.

E falando em leões, assim como as girafas, eles são animais que atualmente estão ameaçados de extinção. Em 2050, pode ser que eles sejam apenas peças de museus. Não os Leões de Cannes, mas os de verdade. Mas a publicidade faz parte do mundo e, por isso, o futuro do festival está diretamente ligado a esse cenário de crise. Sejamos sinceros, porque não tem pra onde correr.

Haverá sentido em ter Leões de Cannes em um planeta sem leões, sem natureza e sem vida? Se você for um pouco girafa, sabe que não.

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