A autocrítica cortante do filme Amy
Documentário revolve como a sociedade do espetáculo anseia por ídolos na mesma proporção em que ajuda a assassiná-los
Documentário revolve como a sociedade do espetáculo anseia por ídolos na mesma proporção em que ajuda a assassiná-los
23 de fevereiro de 2016 - 11h59
No fim de semana passado assisti ao documentário Amy, disponível no Netflix. De lá, ficou batendo na minha cabeça uma frase – na verdade, uma pergunta angustiada – da cantora Amy Winehouse:
“Dad, why do you wanna mug me?”
Na legenda em português, ficou horrível: “Papai, por quê você quer me transformar numa caneca personalizada?”. Mas não dá para culpar o tradutor. Talvez tenha lhe faltado, assim como a boa parte da audiência, compreender o desespero frankfurtiano de Amy em toda sua dimensão. O documentário deixa uma boa trilha para tentar entender a vilania implícita que o dinheiro e a mídia impuseram a alguém que só queria ser feliz cantando Ella e Aretha, sem se preocupar muito com o showbiz.
Essas divas do jazz anteriores à Amy se revelaram ao mundo em épocas distintas. Ella teve seu ápice entre os anos 1950 e 1970 e Aretha, nas décadas seguintes. Elas encararam grandes doses de admiração e até de adoração, mas nada perto do que a cantora londrina viveu, em tempo recorde. Por circunstâncias da época em que despontou, Amy foi, provavelmente, a primeira artista de jazz com o mesmo porte vocal das grandes damas do gênero a ser ao mesmo tempo popular, pop, multimidiática, digital. Mas, convenhamos: enquanto arte sutil e delicada que é, o que o jazz tem a ver com a histeria pop? Nada. Amy sabia disso, e detestava.
A perspectiva do diretor Asif Kapadia denuncia abertamente o drama de uma menina doce, supertalentosa e de ambições modestas ser tragada por um ambiente altamente nocivo, escorado em três elementos: dois homens pelos quais era apaixonada (o pai, Mitchell, e o marido, Blake Fielder) e uma instituição que a trucidou sem pesares, a grande mídia. Sem narrador onipresente, mas repleta de depoimentos de gente que conviveu com a cantora, a abordagem de Asif não é exatamente justa. Fica claro que o drama existencial da cantora é protagonista em relação à própria música. Mas isso é, infelizmente, uma expressão da realidade de Amy. E não dá para ficar apático à ótica incisiva sobre sua autodestruição. O documentário nos faz repensar um monte de esperanças e recrudesce dentro da gente aquela sensação de que este mundo está repleto de filhosdaputa.
A exploração sem limites do pai e do namorado/marido acende um alerta sobre (a falta de) limites consumistas dentro do esgotamento do capitalismo. O quanto um ser humano pode ser convertido em máquina de dinheiro contra sua vontade sem que o mesmo encerre uma trajetória promissora numa vida vazia e sem sentido? O quão grande é a necessidade de o público preencher suas próprias vidas vazias e sem sentido por ídolos pop enfiados goela abaixo por uma mídia ávida por audiência e cifrões? O quanto todos nós colaboramos, inertes e automáticos, para retroalimentar essa indústria fugaz e dilacerante? E, neste processo, seríamos o ovo ou a galinha?
Inicialmente fiquei espantado em saber que Amy era bulímica. Posteriormente, repassando sua vida, fez o maior sentido. De que outra forma digerir a ansiedade à qual era pressionada se não engolindo e vomitando, física e espiritualmente, tudo o que consumia? Outra frase muito marcante do filme é a do mestre Tony Bennett, com quem ela gravou um dueto, lamentando a morte da cantora: “A vida te ensina como viver se você viver o bastante”. Parece cheia de redundância, mas é genial em sua simplicidade. Talvez, se ela tivesse resistido àquela última bebedeira em julho de 2011, tivesse atingido a maturidade suficiente para abstrair a loucura de gravadoras, shows, fãs e imprensa e continuaria cantando até os 80 anos. Talvez, sua última bebedeira fosse a extenuação de uma série insuportável. Não sei o contexto íntimo de seus últimos dias, mas o filme deixa latente a impressão de que ela não teve escolha.
Nesse caldeirão, a voracidade da mídia britânica, particularmente de sua célebre e odiosa imprensa marrom – famosa por assassinar princesas e grampear telefones – ganha destaque. Dessa forma que a vida escancarada de Amy Winehouse na mídia e na intensa digitalização de tudo ganhou ares sinistros na frase:
“Dad, why do you wanna mug me?”
É como se ela enxergasse sua alma aprisionada, tal como os índios brasileiros quando conheceram a fotografia, em milhões de unidades de canecas, imãs de geladeira e camisetas. Ela não conseguia se descolar daquela dura realidade para ter minutos de vida “normal”, fosse para ir ao cinema, fosse para curtir um feriado familiar na casa da praia. Para alguns, o desassossego da fama representa uma troca justa diante da riqueza e do conforto que proporciona. Mas para muitos outros, como Amy, não. E para esses, não damos outra opção.
Veja a seguir o trailer oficial de Amy (2015), de Asif Kapadia:
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