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Opinião

A bancarização em tempos de uberização dos serviços

Essa fórmula prejudica fortemente a economia e enfraquece todo o mercado porque a cadeia de valor vai sendo interrompida


13 de abril de 2020 - 14h18

(Crédito: Rhui1979/istock)

Cada vez mais surgem empresas que focam nos interesses do consumidor em detrimento de resultados de curto prazo. As startups mais inovadoras tratam de oferecer aos usuários produtos e serviços que lhes facilitem a vida. No entanto, essa centralização no consumidor exige uma mudança de mentalidade, já que é preciso inverter a lógica comum, investindo na criação de valor para as pessoas antes de buscar lucros imediatos para a empresa.

O modelo de negócio das startups se contrapõe, assim, ao das grandes corporações, focadas, prioritariamente, na geração de lucro. Um exemplo deste funcionamento é a forma na qual muitas grandes empresas pagam os seus provedores – que usam da sua força de escala para estabelecer novos prazos de pagamento a futuro, exigindo a entrega do serviço do fornecedor no presente. É a bancarização das empresas, no sentido que se capitalizam às custas do elo mais fraco da cadeia, impondo prazos de pagamento entre 90 a 120 dias, após a realização do projeto.

Nem seria preciso dizer como essa fórmula prejudica fortemente a economia, como enfraquece todo o mercado porque a cadeia de valor vai sendo interrompida, colocando profissionais autônomos e pequenas empresas em risco de sobrevivência. É um fenômeno global, que vem gerando a quebra de muitas empresas. E, diante de um cenário de crise iminente que a Covid-19 está apontando, é provável que o prognóstico não mude para melhor. O perigo que temos adiante é de que haja um reforço ainda maior dessa visão autocentrada, com o objetivo de preservar, ou minimizar as perdas, que já estão acontecendo e que devem se intensificar proximamente.

Na vida empresarial, geralmente há dois caminhos disponíveis para manter a receita em tempos de crise – o de recortar custos para sobreviver, e/ou o de criar serviços para surpreender. Normalmente, a reação instintiva da maioria, diante de uma crise, é a de enxergar somente o primeiro (curto prazo), ignorando a oportunidade do segundo (longo prazo). Pode parecer leviano, ou até utópico apostar em algo novo enquanto o presente se esvai. Mas, épocas de crise justamente trazem oportunidades para aquela minoria que aposta pela promessa de diferenciação futura, pós-crise. Ao identificar novas necessidades e criar soluções para atendê-las, a empresa ganha relevância pela pertinência do que oferece, pronta para surpreender quando a crise finalmente perde sua força. E o ganho gerado por este novo serviço, criado em paralelo, pode ser o que compensará as perdas sentidas pelo negócio convencional.

Há exatos vinte anos, surgia uma empresa fundamentada neste segundo caminho. Foi uma das primeiras a elevar as necessidades dos clientes acima da rentabilidade do seu próprio negócio. Esta matéria do The Guardian do ano 2000 refresca a nossa memória. Repetidos períodos de prejuízo colocavam a Amazon nas profecias mais dramáticas possíveis. Ninguém acreditava que continuaria viva a curto prazo. Vinte anos depois, a Amazon não apenas segue viva, como está ameaçando aqueles mesmos profetas que apostavam pelo seu fracasso. O seu lucro só começou a aparecer quase dois anos depois da sua fundação, alcançando a cifra de US$ 5 milhões – que representava 1% por ação (diante de uma receita de mais de US$ 1 bilhão).

Mas, qual o motivo de lucros tão modestos, se comparados à receita? A resposta está na escolha feita por Jeff Bezos, que optou claramente pelo segundo caminho. Bezos adotou (e segue adotando) uma visão futura de investir grande parte dos seus ganhos em tecnologia e logística para gerar valor continuamente – oferecendo produtos mais baratos que a concorrência, e com entregas cada vez mais rápidas ao consumidor.

Assim como o exemplo da Amazon, qualquer novo modelo de negócio que se proponha a romper com o status quo, e criar valor para as pessoas (visão sócio-centrada), precisa de tempo para amadurecer e ganhar escala. Porque esta mudança implica em abrir mão do lucro imediato em prol de resultados mais consistentes no tempo. E a criação de valor, cabe reforçar, não é sobre se capitalizar às custas dos outros, atrasando pagamentos a fornecedores, mas sim sobre lançar soluções que resolvam necessidades reais.

Plataformas de serviços ilustram bem esta nova proposta de valor. Uber, por exemplo, gera valor mediante a criação de atalhos, simplificação dos processos e alinhamento de expectativas. Sua crescente e consolidada adoção, no entanto, não se deve somente à evidência destes benefícios, mas sobretudo aos preços mais baixos oferecidos – possíveis  graças uma operação mais ágil e enxuta, que se utiliza de tecnologia e de condições de trabalho mais restritas. A estas condições recaem reclamações e polêmicas, que questionam o sistema de remuneração a seus colaboradores (motoristas, neste caso e entregadores, no caso da Amazon). A questão é que, diante do novo, não podemos seguir julgando, ancorados nas normas vigentes. Novos modelos trazem com eles novas reflexões, abrindo a oportunidade para modernizar, questionar ou ampliar as condições legais de trabalho atuais. O cenário que se aproxima exigirá mudanças, que podemos começar a intuí-las lendo os sinais por trás da aceitação do mercado por estes novos serviços. Ela nos faz pensar se, por exemplo, ainda faz sentido nos limitar a uma jornada diária de oito horas de trabalho, controlado por cartão de ponto, ou nos abrir a modelos mais flexíveis, com mais autonomia para colaborar em diferentes projetos, que ofereçam mais sentido e que, somados, ofereçam uma renda suficiente mensal.

Para lidar com o panorama de crise iminente, portanto, é fundamental desenvolver uma consciência sócio-centrada, que permita entender o ecossistema do negócio a partir da interdependência das relações que o torna possível, respeitando a todos que fazem parte dela. Essa nova mentalidade requer o amadurecimento de todos, porque provoca mudanças incômodas, ainda que necessárias. Se há a necessidade de atrasar pagamentos, e isso não pode ser extensível a todos da cadeia, será preciso pensar em outras medidas que possam ser replicáveis em rede, permitindo que todos sobrevivam – ainda que com menos. Com a intenção correta e ajustes contínuos será possível oferecer mais equilíbrio para os distintos agentes, unidos por um compromisso comum: o de gerar valor continuamente em rede, ao invés de prejudicar a todos em benefício próprio.

*Crédito da foto no topo: Eugenesergeev/ iStock

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