A gôndola mental
Obesos de informação e anoréxicos de insights, corremos o risco de abrir mão da nossa capacidade intuitiva de organizar a enxurrada de indicadores factuais
Obesos de informação e anoréxicos de insights, corremos o risco de abrir mão da nossa capacidade intuitiva de organizar a enxurrada de indicadores factuais
“O pior cego é o que só vê a bola”, dizia nosso maior dramaturgo Nelson Rodrigues. Ele falava isso como referência ao futebol, que amava, mas também ao primarismo de algumas formas de olhar o mundo. Como os “idiotas da subjetividade” que punham estatística no lugar da intuição.
Nos últimos anos, essa imagem provocativa que ele criou tanto me persegue e me incomoda assim como me inspira. Ela me persegue porque, muitas vezes, tenho sido um idiota da subjetividade ao conviver com tabelas, montanhas de números, equações matemáticas. Mas eis que, repentinamente, uma voz interna me lembra das proféticas palavras do escritor. E parto em busca de algo verdadeiramente inspirador por trás da maçaroca estatística. Algo que tenha um verdadeiro sentido e valor. Quando isso ocorre? No momento em que a intuição, o outro lado do cérebro, vem em meu socorro. E que ninguém me acuse de aversão a números, afinal, tenho uma longa história de romance com eles, que é o que acontece com qualquer engenheiro como eu.
Há muito tempo na Grécia, numa banheira, Arquimedes gritou Eureka! E descobriu uma lei, que até hoje permanece nos compêndios de física. Eureka em grego significa encontrei! Imagino que ele tenha vivido essa que é a mais genuína e poderosa das manifestações humanas: a autêntica revelação do que realmente faz sentido. Do que está por trás do que é pura aparência. Da ingênua superfície de tsunamis de bits que nos cercam. Daquilo que nos torna obesos de informação e anoréxicos de insights. Algo pelo qual tenho me debatido há vários anos, nem sempre bem compreendido.
Bem, de Arquimedes para Nelson Rodrigues é um pulinho, apesar dos mais de dois milênios. O risco que estamos correndo todos os dias, neste cenário contemporâneo, é abrir mão do que temos de mais precioso: nossa capacidade intuitiva de organizar a enxurrada de indicadores factuais e submetê-los à parte mais nobre do cérebro, que nos diferencia de outras espécies.
Em vários segmentos profissionais, observo uma irresistível tendência a aceitar o imediatismo da informação bruta, um fascínio quase indecoroso pelo que ela mostra num primeiro momento. E nos mais jovens do mercado, ainda mais. Um comodismo diante da primeira impressão factual. Salve os arqueólogos, os psicanalistas, os joalheiros, os Zicos, os Zitos, Neymars e Pelés que nunca olharam só para a bola! Nenhum deles jamais se contentou com a superficialidade das coisas. Sem isso, não teríamos conhecido os subterrâneos de Roma, ou o inconsciente que mora em nós, ou melhor, onde nós moramos, e nem mesmo os lançamentos de 30 metros que colocam o atacante cara a cara com o gol.
Abaixo a insensata tecnocracia numerológica, a precipitação digital que coloca o instrumento antes da necessidade, o imediatismo de soluções pueris. Abaixo a realidade aparente do nos diz a gôndola dos supermercados, que fotografa o passado.
Salve a gôndola mental! Aquela que reside em nós mesmos consumidores e profissionais e que abre as janelas do futuro. Quem se dedica a estudar e compreender a trama que espreita as marcas em nossas gôndolas mentais é quem prepara os novos e bem-sucedidos passos que elas darão.
Tive o privilégio de trabalhar ao lado do Ercílio Tranjan, que dirigiu a criação da Lintas, há um bom tempo (para os mais jovens, juro que existia uma agência com esse nome). Mesmo com outras palavras, ele sempre me estimulou a fuçar nas gôndolas mentais antes de formular suas soberbas criações. Aliás, um grande enxadrista como ele entende muito bem essa necessidade.
O que chamo de gôndola mental é o que Madelyn Olson chama de “The Psychology of Compelling Branding”. Fica mais bonito, mas é a mesma coisa: a insubstituível capacidade de colocar nossa intuição à frente de tudo, de qualquer coisa que contrarie nosso bom senso, de qualquer número que não faça sentido. Compreender a gôndola mental é o que coloca o atacante na cara do gol.
*Crédito da foto no topo: Reprodução
Compartilhe
Veja também
A consciência é sua
Como anda o pacto que as maiores agências do País firmaram para aumentar a contratação de profissionais negros e criar ambientes corporativos mais inclusivos?
Marcas: a tênue linha entre memória e esquecimento
Tudo o que esquecemos advém do fato de estarmos operando no modo automático da existência