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Opinião

A ilha do futuro

Somente o apoio mútuo entre setor público, empresas e instituições educacionais será capaz de gerar as competências necessárias para a mão de obra de um país ou segmento triunfar nos próximos anos


22 de outubro de 2019 - 14h00

Centro de Tecnologia da Universidade Cornell, em Nova York (Crédito: Marcelo Coutinho)

Visitar o Centro de Tecnologia da Universidade Cornell em Nova York , abrigado em uma parte da Roosevelt Island, é uma oportunidade de refletir sobre as profundas mudanças que estão ocorrendo no mundo da educação para o trabalho e empreendedorismo, e de como as organizações brasileiras estão despreparadas para lidar com elas. Em seus primeiros anos, o Centro funcionou nas instalações do Google na cidade, enquanto parcerias entre Cornell, a Universidade Technion de Israel (o principal polo de empreendedorismo tecnológico daquele país) e diversas empresas (Verizon, Tata, Bloomberg e Google, entre outras) se encarregavam de iniciar a construção do campus que, ainda pela metade, já impressiona.

Desde o seu princípio, o Cornell Tech (foto) foi concebido para ser um “ponto de encontro” entre tecnologia e empreendedorismo para melhorar a vida na cidade, tanto através de programas voltados para questões urbanas (transporte, saúde, educação básica) quanto para aplicações relacionadas com o uso da tecnologia em diversas profissões, iniciando com programas de mestrado aplicado em lei e tecnologia (lawtech), saúde e tecnologia (healthtech) e, o que interessa mais de perto aos leitores do Meio & Mensagem, “mídia conectiva”, voltado para o desenvolvimento de “ecossistemas na intersecção entre mídia, tecnologia, comunicação e informação”.

A combinação de disciplinas técnicas (aprendizado de máquina, realidade virtual, design de interfaces, data mining, realidade aumentada etc.) com matérias de ciências humanas (psicologia, design participatório, teoria da linguagem, pesquisa comportamental etc.) é mixada com cursos e projetos de um setor denominado “studio”, obrigatório para todos os cursos do campus, que, além de disciplinas do mundo dos negócios (finanças, liderança, gerenciamento de projetos, sistemas legais para fintechs, inovação dentro de grandes corporações etc.), exige dos alunos o desenvolvimento de projetos práticos para atender demandas dos diversos órgãos públicos e das empresas que financiam o Centro.

Em quatro anos, essas iniciativas já geraram 18 pedidos de patentes e mais de U$ 70 milhões investidos em 60 empresas em “early-stage” da captação. Uma das que mais me chamou a atenção foi a Uru, adquirida pela Adobe ainda na versão beta dos seus produtos e serviços. A empresa, criada pelos alunos como um projeto de estudo, utiliza visão de computador para integrar anúncios dentro de trechos de vídeos, de forma natural e automatizada. Por exemplo, ao encontrar uma parede em branco em um trecho de conteúdo no YouTube, o software introduz automaticamente uma publicidade nela. Curiosamente, a Uru nasceu do encontro de um advogado que estudava questões de direito autoral e uso de ad-blockers na área de legaltech do Centro com um programador brasileiro que estava fazendo seu mestrado na área de visão de computador.

Ouvindo os depoimentos de alguns destes alunos-empreendedores, fica claro que o profissional do futuro no setor de marketing e publicidade vai ter que adotar um perfil generalista com uma ou duas áreas de profundo conhecimento, sendo que uma delas deverá ter um forte caráter tecnológico. E eles não virão, necessariamente, do mesmo campo de atuação atual (comunicação) como o exemplo acima deixa claro.

Trata-se de um enorme desafio tanto para os gestores atuais — que chegaram ao topo da carreira exatamente por dominarem com maestria um conjunto de competências que estão ficando rapidamente obsoletas — quanto para as escolas de comunicação e negócios, que ainda trabalham de uma forma muito lenta para aproveitar adequadamente as inúmeras oportunidades geradas pelo avanço do uso das tecnologias nos mais diversos campos (a Uru, de certa forma, é uma resposta ao avanço tecnológico representado pelos ad-blockers).

Do ponto de vista organizacional, nossas empresas terão que mudar tanto sua estrutura de RH, notadamente as práticas de recrutamento, seleção e critérios de avaliação (quem sabe um dia prêmios na Conferência anual da Associação para o Avanço da Inteligência Artificial não se tornem tão importantes quanto um Leão em Cannes?) quanto de relacionamento com o cliente. Caso contrário, será muito mais fácil para as empresas de tecnologia atraírem os talentos publicitários que o oposto. Ao mesmo tempo, a queda das barreiras econômicas para o empreendedorismo possibilita aos insatisfeitos montarem seus próprios negócios a partir da observação de pontos de atrito no sistema atual da publicidade, como fez o advogado que criou a Uru.

Claro que esse é um processo muito mais sofisticado e demandante do que pregam os profetas do “crescimento exponencial” aos romeiros do Vale do Silício e adjacências, mas a proliferação de modelos de educação empreendedora que combinam negócios e tecnologia é o caminho que está sendo seguido nas instituições de ponta em diversos países. E, nesse aspecto, o imperativo da transformação recai sobre as instituições educacionais. Se se mantiverem como simples produtoras/reprodutoras de conteúdo e certificadoras de competências, terão um papel cada vez mais reduzido na economia moderna. Somente o apoio mútuo entre setor público, empresas e instituições educacionais será capaz de gerar as competências necessárias para a mão de obra de um país ou segmento triunfar nos próximos anos.

*Crédito da foto no topo: Slavemotion/iStock

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