A inveja e suas maldições
Nada é capaz de me causar mais espanto do que ver pessoas indiscutivelmente talentosas perdendo a compostura diante de outras
Nada é capaz de me causar mais espanto do que ver pessoas indiscutivelmente talentosas perdendo a compostura diante de outras
Meu pai um dia me falou que todas as pessoas acabam perdendo pelo menos duas coisas com o passar do tempo: a memória e a capacidade de se espantar. Aos 52 anos, dois a mais do que o meu “velho” tinha quando partiu deste mundo, eu confesso que ainda não percebi tais sintomas. Não devo ter envelhecido o suficiente, imagino, pois continuo lembrando intensamente mesmo de coisas aparentemente irrelevantes — como o nome das antigas danceterias e as estampas das camisetas da Company dos anos 1980 — e permaneço absolutamente espantado com as coisas que vejo no mundo, de Donald Trump ao Fla x Flu irracional entre amigos de direita e esquerda nos gramados das redes sociais. No entanto, nada é capaz de me causar mais espanto do que ver pessoas indiscutivelmente talentosas perdendo a compostura diante de outras, cujo único pecado parece ser o de terem um pouco mais de brilho intelectual. Carreiras brilhantes se perderam em meio a rivalidades bestas e invejas tristonhas.
Certa vez, o grande cavalheiro da publicidade, David Ogilvy, redigiu uma nota, intitulada “Tolere o Gênio”. Dizia assim: “Conan Doyle escreveu que ‘a mediocridade não reconhece nada melhor do que ela mesma’. Tenho observado que os homens medíocres reconhecem o gênio, ressentem-se dele, e sentem-se compelidos a destruí-lo. Existem poucos homens de gênio nas agências de publicidade. Mas precisaremos de todos os que pudermos encontrar. Quase sem exceção, eles são desagradáveis. Não os destruam. Eles põem ovos de ouro.” O que Ogilvy escreveu como conselho para os publicitários se aplica perfeitamente aos clientes dessas mesmas agências de publicidade, que muitas vezes se envolvem em estúpidas competições intelectuais com os próprios profissionais que os atendem ou mesmo tratam de destruir galinhas dos ovos de ouro que têm em suas equipes. Tudo por simples questões de insegurança ou inveja. Quando penso nesses pobres coitados, não posso deixar de lembrar a amarga história de um gênio, Maradona, inconformado com a existência de um gênio ainda maior: Pelé.
Durante muitos anos as pessoas vêm discutindo e tentando descobrir quem é o Pelé do basquete, o Pelé do vôlei, o Pelé do golfe, o Pelé da política, do cinema – e talvez até o Pelé do jogo de bolachas de cerveja da saideira do Bar Jobi, no Baixo Leblon. Por alguma razão insondável, nossos vizinhos do andar de baixo acharam por bem decretar que o Pelé do futebol se chama, na verdade, Maradona. Para isso, apoiam-se numa antiga eleição eletrônica mal organizada — daquelas que costumam apontar O Pequeno Príncipe como o livro do século, ou consagrar a mulher-fruta da hora como a criatura mais linda do planeta.
Morei em Buenos Aires e observei El Diego em ação muitas vezes, o suficiente para concluir o seguinte: foi um gênio absoluto. Incrível domínio de bola, visão de jogo quase mediúnica, carismático, valente, um verdadeiro príncipe dos gramados. Ganhou uma copa do mundo praticamente sozinho, foi césar em Nápoles — e quantas vezes o vi pacificar ou incendiar, com mínimos gestos, a apaixonada torcida do Boca Juniors. Era capaz de incríveis malabarismos, até com uma bolinha de papel, como demonstrou quando foi homenageado pelos universitários de Oxford. Mas, acima de tudo, Maradona foi um apaixonado pela arte de jogar futebol com classe, hoje em vias de desaparecimento.
Maradona foi um grande, mas não duvidem: compará-lo com Pelé é o mesmo que querer sentar Deus e o apóstolo Paulo nos pratos de uma balança e tentar tirar disso alguma conclusão. Pelé foi incomparável. A perfeição em forma de jogador de futebol. Medi-lo com qualquer atleta, de qualquer modalidade, seria mais do que uma injustiça — seria um linchamento. No entanto, já que os argentinos — e o próprio Maradona — foram os primeiros a tentar semelhante heresia, sinto-me compelido a transformar em números e palavras as diferenças entre ambos.
Vamos começar pelo que me atrai menos: os números. Pela fria e covarde matemática, Pelé ganhou três copas, contra uma do argentino. Os 354 gols que Maradona fez, equivalem ao troco, à sobra, aos quebrados dos mil e tantos que o Rei deixou nas redes adversárias. Pelé fez mil e tantos; Maradona fez tantos. Ou seja: mesmo no outono da carreira, depois do antológico Milésimo Gol, Pelé fez tantos gols quanto Dieguito em toda a sua vida. Vou além: Pelé fez mais gols de cabeça, de falta, de pé direito, de peito, de bico, de canela, sem querer e, creiam-me, até mesmo de pé esquerdo do que o canhoto Maradona. Falando de sentimentos, que em futebol importam mais que os números, a verdade é que nenhum outro jogador deu mais alegria ao mundo do que o nosso Pelé. Digo mundo porque enquanto Maradona sempre foi e sempre será argentino, Pelé tornou-se patrimônio da humanidade. Pelé interrompeu guerras, uniu nações, derrubou fronteiras políticas e raciais. Pelé transcendeu o futebol, algo que Maradona jamais esteve perto de experimentar.
Entretanto, a maior façanha de Pelé foi o fato ter sido Pelé e ter sobrevivido a isso. Um homem que possui o rosto mais conhecido do planeta há tantas décadas, tão venerado, tão visado, ter permanecido mentalmente são é algo que está além do meu entendimento. Maradona não aguentou a pressão de ser Maradona. Foi demais para ele conviver com o massacre psicológico da idolatria de bilhões de pessoas ao redor do mundo. Como tantos outros mitos do esporte, Diego não suportou o peso da fama e desabou. O homem que hoje tem 56 anos e aspecto de ancião, há pouco mais de uma década desfilou sua tragédia pessoal pela Bombonera, diante dos olhares de compaixão de torcedores e jogadores que compareceram ao seu jogo de despedida. Com cerca de 40 anos, estava gordo como uma pipa e se arrastava pelo campo. Aquela triste cena inevitavelmente me fez recordar Garrincha em seu jogo de adeus: caricaturas, paródias de si mesmos. Fantasmas. Minha filha achou graça do gordinho da camisa 10. Chamei sua atenção: — Não ria. Aquele homem foi um dos maiores gênios do esporte, e aliviou as dores de muitos dos que buscam no futebol a cura para as mazelas cotidianas.
Talvez aqui resida a derradeira prova da supremacia do Rei sobre seus súditos. Aos 76 anos, Pelé, embora desgastado pelo tempo, continua a luzir praticamente o mesmo aspecto físico de quando abandonou os campos. Só essa imagem, a do senhor preservado contraposto ao jovem devastado, já seria suficiente para provar o óbvio: Pelé não jogou mais que Maradona apenas enquanto esteve na ativa. Pelé jogaria mais do que Maradona até se tivesse participado do jogo de despedida do argentino, apesar de ser duas décadas mais velho. De forma que não nos resta outra conclusão: o Pelé do futebol foi mesmo Pelé. E essa obviedade não tira o brilho do anjo caído Maradona, o grande Diego Armando Maradona, “o homem que queria ser rei” — e que se deixou destruir por não haver conseguido.
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