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A melancolia de um mercado bovarista

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Opinião

A melancolia de um mercado bovarista

Estado de insatisfação crônica na publicidade é resultado de gap geracional e herança de uma vivência analógica deslumbrada com futurismos e promessas tecnológicas


2 de maio de 2022 - 15h00

Pessoas, marketing e tecnologia são prioridades para a Elo em 2022

Nosso mercado poderia se estabelecer como referência sobre o comportamento das pessoas e suas relações com o consumo. Mas a escolha vem sendo trilhar o caminho do deslumbramento futurológico com promessas tecnológicas, desconectadas das pessoas e dos principais desafios do presente. Escolhemos nos posicionar como um mercado essencialmente bovarista.

O bovarismo é um termo cunhado ainda no século 19 por Jules De Gaultier, num ensaio sobre o romance “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert. Segundo a Wiki, “O bovarismo faz referência ao estado de insatisfação crônica de um ser humano, produzido pelo contraste entre suas ilusões e aspirações (que geralmente são desproporcionais tendo em conta suas próprias possibilidades) e a realidade frustrante.”

As tecnologias digitais causaram um grande impacto na publicidade e no marketing. A dinâmica da web, das redes sociais e dos dispositivos móveis mudou a forma como as pessoas se relacionam entre si e com o mundo, com impactos diretos na cultura, economia, política e meio ambiente. E na publicidade, claro. A complexidade, que sempre existiu, dessa vez emergiu.

A publicidade criou suas próprias plataformas e novas categorias de agências: digital, interativa, performance, dados… Mostrar-se “antenado”, “conectado”, “por dentro”, são uns jargões de tiozão ainda muito repetidos. E esse gap geracional é o que evidencia o fracasso dessa abordagem: a herança de uma nascença e vivência analógica, criada à base de leite com pêra, ovomaltino e um tiquinho assim de estética futurista dos anos 1980, consumida através de muita mídia offline unidirecional, o que moldou uma visão de mundo reducionista e binária. E esse hábito de perceber, relacionar e nomear as coisas de forma separada produz uma visão de mundo, uma realidade onde ser e saber estão desarticulados. Onde a tecnologia pode ser falada de forma desconectada do todo.

E nesse imaginário futurista binário não existe espaço para o incerto. Criou-se uma obsessão em estabelecer certezas como algo soberano ao próprio saber. O consumo de reportes de tendência é o crack da nossa geração. Keynotes com previsões no SXSW são tratados como a descida de Moisés com os mandamentos talhados em pedra. A pandemia foi um terreno fértil para as especulações tratadas como certezas. Nessa época, eu me contorcia a cada post de algum marqueteiro no LinkedIn dizendo que as lives significavam o futuro do entretenimento.

No início da pandemia, Emicida conseguiu resumir bem esse sentimento de expectativas de mudanças numa estrutura feita para não mudar.

“Esse momento por si só, por mais traumático que ele seja, não tem força para fazer com que a gente entre mastigado e saia lindo. A construção é baseada em outras coisas. A gente precisa fazer um outro movimento, rumo a subir esse degrau, que não pode estar vinculado a uma pandemia. A gente precisa entender como a gente se relaciona, como a gente consome, como a gente mora, como a gente dorme, como as outras pessoas fazem tudo isso.”

Nós, como mercado, poderíamos ter nos tornado grandes referências sobre o comportamento das pessoas, sobre como elas se relacionam e fazem suas escolhas. A excelência do nosso trabalho como profissionais de comunicação reside na investigação e compreensão do que existe nas relações entre sujeitos e objetos. Antropologia, psicologia, economia comportamental, sociologia… Tudo relacionado a pessoas. A complexidade deveria ser o nosso parque de diversões.

Mas escolhemos ser uma fábrica de deslumbres tecnológicos sem interlocução com as humanidades. Curiosamente, o mercado de certezas sobre o futuro no Brasil é essencialmente branco, quase todo masculino e da mesma classe social – o que diz muito desse futuro bovarista, desprovido de questões de raça, classe, gênero ou sustentabilidade. É uma fuga do presente perfeitamente embalada com aquele gostinho do tempo em que o mundo era “menos chato”.

A publicidade e o marketing não são especializados em previsões futurológicas (quase sempre um wishful thinking calcado num passado oitentista e sem preocupações com o pacto civilizatório), mas em entender e se apropriar dos fenômenos culturais do presente. Nosso objetivo não deve ser o de explicar uma nova tecnologia, mas entender como as tecnologias atuais possibilitam que as pessoas possam contar suas próprias histórias a partir das suas realidades hoje.

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