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Opinião

A verdade, sempre abaixo da superfície

Apesar de nosso compromisso ser com o futuro do marketing, sempre se aprende ao olhar as frestas do passado


23 de julho de 2024 - 6h00

Tenho certeza de que vocês ainda não tinham nascido. Pelo menos, a maioria dos que me leem agora. Aconteceu em 1957. Naquele ano, foi publicado nos Estados Unidos o livro The Hidden Persuaders (em tradução livre, Os que estão escondidos e nos convencem), de Vance Packard (1914-1996), jornalista e crítico social americano.

Peguei o livro na estante e tirei o pó dele. Há alguns anos, havia abandonado a sua leitura. Naquela ocasião, senti nele um tom de denúncia amarga sobre a forma como o marketing e comunicação tratariam manipulativamente, na visão dele, o consumidor americano no pós-guerra. Hesitei, mas desta vez decidi ir em frente.

Todos já vimos outros autores com essa crítica amarga. Mesmo hoje, em vários ambientes, inclusive acadêmicos, ouve-se a mensagem: “tome cuidado com esses caras encantadores de serpente”. A diferença é que o Packard não apenas criticava, não fazia uma denúncia vazia. Ele revelava como o consumidor estaria sendo anestesiado e controlado pelas irresistíveis mensagens e estratégias que floresciam no mercado. E foi exatamente isso que me impediu de interromper a leitura. Ele matava a cobra e mostrava a cobra. Algo mais convincente do que mostrar somente o pau.

Por isso encarei o livro. Conhecer ideias e insights de comunicação e marketing, que, segundo ele, entrariam insidiosamente em nossas vidas de consumidores. Packard estava revelando a natureza do “veneno”. O suposto “veneno” que é, como todos sabemos hoje, o que alimenta planos de marketing, comunicação e branding bem-sucedidos porque mobiliza as nossas motivações mais profundas e genuínas.

E mais importante: essas ideias parecem descobertas muito mais recentes. E lá estavam elas, escancaradas já em 1957.

Por curiosidade, aqui vão dois dos muitos exemplos que li no The Hidden Persuaders.

Quantas e quantas vezes, vemos empresas que ainda insistem em mostrar algo como uma “bula de remédio” para descrever todos os benefícios técnicos e funcionais dos produtos. E não funciona. Há 67 anos, já haviam percebido que a venda de freezers não andava bem porque a “bula” não funcionava. O que funcionou? Trocar apelos técnicos por algo muito mais poderoso: o sentimento de segurança de que haveria sempre comida em casa para a família, particularmente num clima ainda de incerteza do pós-guerra.

Outro exemplo? Trabalhei por vários anos atendendo detergentes em pó da Unilever. Lembro-me da insistência de um profissional de marketing exigindo que top performance deveria ser a mensagem central do produto. Ele também não tinha lido o livro. Uma pesquisa do Chicago Tribune, que a obra cita, mostrou que importante mesmo não era a limpeza e o desgastante trabalho em si, mas a autoestima e valorização do papel social da consumidora, isto é, não a suposta mágica do produto apenas. A inspiradora história de OMO demonstra que o livro tinha razão, os verdadeiros protagonistas são a família e a liberdade de se sujar. Como OMO tem repetido: “Se sujar faz bem”.

Naquela mesma época, Ernest Dichter (1907-1991), psicólogo americano, grande pai da pesquisa motivacional, fazia grandes descobertas sobre o comportamento de consumidores, de que desfrutamos até hoje. Foi ele, aliás, que formulou a identidade definitiva da Barbie, do jeito que a conhecemos hoje, segundo li recentemente em artigo do Francisco Madia. Dichter nos ensinou a ir além da aparente lógica superficial de nossos comportamentos, porque, afinal, consumidores dizem o que pensam, mas fazem o que sentem.

Para não pensarem que continuo na década de 1950, vejam o que disse um grande mestre brasileiro, o saudoso e inesquecível Júlio Ribeiro, que deu o privilégio de prefaciar um livro meu (As marcas no divã.), em agosto de 2009. Afirmou que o mercado inventa palavras “…para explicar um ato que não passa pela mente (dos consumidores) e, além de não explicar nada, transforma o ato de comprar numa pretensa ação premeditada.”

O nosso compromisso é com o futuro, mas não abro mão de olhar por essas frestas reveladoras do passado. Mesmo que, às vezes, a poeira digital embace minhas lentes e a patrulha da modernidade possa me cancelar.

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