Angústias e limites de um novo tempo
Precisamos de um pacto imbuído de emocionar, mas com o compromisso de zelar pela transparência
Precisamos de um pacto imbuído de emocionar, mas com o compromisso de zelar pela transparência
16 de novembro de 2020 - 12h56
É curioso como, muitas vezes, recorremos a ensinamentos e aprendizados distantes para compreender o presente. Recentemente, me dei conta de que somos apresentados a conteúdos extremamente ricos, mas a experiência de vida e maturidade são insuficientes para absorver o real valor de seu significado. Em 2001, tive contato com a obra de Guy Debord — lendo o livro A Sociedade do Espetáculo, redigido em 1967, mas que, numa dessas maluquices irracionais, ajuda a compreender e muito o que temos explorado nos tempos atuais.
Sua obra é uma acusação polêmica da cultura de consumo. O livro examina o “espetáculo”, que é a manifestação cotidiana dos fenômenos impulsionados pela publicidade, televisão, filme e celebridades. Embora o termo “mídia de massa” seja frequentemente usado para descrever a forma do espetáculo, Debord ridiculariza sua neutralidade. Em vez de falar sobre o espetáculo, as pessoas muitas vezes preferem usar o termo “mídia”, mas isso seria insuficiente para compreender o significado de demonstrar o “reinado autocrático da economia de mercado.” Essa forma de arte, cultura e entretenimento reduziria a realidade a um suprimento superficial de fragmentos mercantis que encoraja a nos concentrar nas aparências. Isso constituiria uma “degradação” inaceitável de nossas vidas.
Debord observou que o espetáculo altera ativamente as interações e relacionamentos humanos. As imagens influenciam nossas vidas e crenças diariamente; a publicidade fabrica novos desejos e aspirações. A mídia interpreta e reduz o mundo com o uso de narrativas simples. Fotografia e filme diminuem o tempo e a distância geográfica com a ilusão de conectividade universal. Novos produtos transformam a maneira como vivemos. As noções de Debord podem ser aplicadas à dependência atual da tecnologia. O que você faz quando se perde em uma cidade estrangeira? Você pede direções a um transeunte ou consulta o Google Maps no seu smartphone? Essa tecnologia é incrivelmente útil, mas também induz nosso comportamento. Acaba nos reduzindo a uma série diária de atos previsíveis e comuns a todos. Se estivesse vivo, quase certamente estenderia sua análise do espetáculo para as redes sociais. Sem dúvida, ficaria horrorizado com a forma que monetizam amizades, opiniões e emoções. Pensamentos e experiências internas são agora bens que podem ser consumidos em mercadoria.
O que nos obriga a comprar o gadget mais recente? Por que derramamos sentimentos no Facebook, em postagens que são arquivadas na nuvem? O que é mais importante, a expressão do próprio sentimento, ou o conhecimento de que será documentado e visto por outras pessoas? Temos medo de ser ninguém – de estar “à margem da existência?” Se você está preocupado com a sua aparência, então você está realmente vivendo? Ou ainda na versão formal de suas palavras — “O ser é substituído por ter, e ter é substituído por aparecer. Não vivemos mais. Nós aspiramos.”
E, para não ficarmos hipnotizados pelo paralelo de seu pensamento para com a internet e redes sociais, sua obra apresenta outras contradições e angústias que podem ser materializadas na televisão aberta e popular, bastando zapear no horário nobre: os telejornais (reino da realidade) se organizam numa narrativa emocional recorrendo a um modelo de melodramas (reino da ficção) e as novelas (reino da ficção) vão se alimentar no reino da realidade para serem verossímeis e engajar telespectadores. O reino da notícia bebe da ficção, e vice-versa, produzindo um entendimento parcial, fragmentado e confuso do mundo.
Seria nossa omissão e cumplicidade com esses métodos durante décadas a gênese para lidarmos com o maior problema do ecossistema de comunicação no planeta? Não me parece absurdo que o desespero visceral em combater a sedução do espetáculo por parte de Debord tivesse fundamento. As fake news são a versão profissional e cínica desse fenômeno. Sem controle dos meios de comunicação por um regulador, ou sem a curadoria de uma suposta elite intelectual como no século passado, vivemos a mistura de pinceladas verdadeiras e genuínas com narrativa ficcional e conspiratória que elege políticos e destrói reputações de pessoas e marcas cotidianamente.
Que, ao contrário do saudoso Debord, nós, profissionais de agências, veículos e anunciantes possamos dar algum desfecho em vida para lidarmos com responsabilidade com o subterfúgio fácil de usar o espetáculo como recurso de persuasão fútil para vendas e construção de marcas. Dado o descontrole total onde o inventor é destruído pela invenção, se dá como compulsória a superação do nosso modelo velho e corroído. Precisamos de um pacto mais sincero, imbuído de emocionar sempre, mas com o compromisso cível de educar e zelar pela transparência com as pessoas. Custe o que nos custar.
*Crédito da foto no topo: Reprodução
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