Apertem os cintos: a audiência sumiu
Perdi a conta das empresas que apareceram propondo um sistema que retratava de maneira mais fiel as novas formas de consumo de mídia
Perdi a conta das empresas que apareceram propondo um sistema que retratava de maneira mais fiel as novas formas de consumo de mídia
24 de setembro de 2021 - 10h37
“O que pode ser medido pode ser melhorado” – Peter Drucker
Sistemas de avaliação são sempre um misto de ciência (no processo) e confiança (em quem desenvolve, aplica e analisa os resultados deste processo). Isso vale tanto para análises de desempenho quanto audiência ou retorno do investimento. No final de agosto, um desses pilares foi abalado com o pedido da Nielsen de interromper a certificação do seu painel de televisão nos EUA, realizada pelo Media Ratings Council (MRC), uma das principais entidades do mercado publicitário naquele país.
A metodologia de painel domiciliar para mensuração da audiência da televisão já vinha sendo questionada desde meados da década passada, mas problemas decorrentes da instalação e verificação da amostra foram agravados durante a pandemia, ao ponto de a associação que representa algumas das maiores emissoras de televisão ter solicitado a suspensão da certificação da Nielsen em junho. Segundo a entidade, os painéis de audiência regional foram os que mais sofreram distorções diante da decisão da empresa de não entrar na casa dos painelistas durante boa parte do ano passado e a concentração de seus esforços na criação de um novo sistema, que vai combinar informações de audiência televisiva do painel com dados obtidos por meio de plataformas digitais, gerando um prejuízo ao mercado que pode chegar à casa dos bilhões de dólares.
A pandemia apenas acelerou um processo de desconfiança em um sistema de mensuração que não é mais capaz de dar conta das inúmeras transformações no ambiente midiático nos últimos 20 anos. Não tenho dúvida de que a metodologia de painel era (e é) adequada para medir a audiência do conteúdo transmitido por meio de aparelhos televisivos utilizando cabo ou frequências do espectro eletromagnético, como foi desde os anos 60. A questão é que este tipo de consumo está se tornando cada vez mais irrelevante diante do surgimento das novas tecnologias de transmissão baseadas no protocolo IP.
Mas construir um sistema de mensuração capaz de dar conta das enormes mudanças tecnológicas, produtivas (de conteúdo e publicidade) e comportamentais geradas pela popularização destas tecnologias não é um processo simples tanto do ponto de vista científico quanto financeiro. É preciso não apenas coletar fielmente e repetidamente um número representativo de “observações” (neste caso, interações com o conteúdo midiático) como assegurar um tratamento estatístico que o torne representativo da população como um todo e articular estes dados com um sistema de decisão (no nosso mercado, o investimento publicitário) que frequentemente envolve interesses conflitantes, quando não antagônicos (a empresa de mídia quer vender a atenção que seu conteúdo desperta pelo preço mais alto possível, enquanto o anunciante quer comprar pelo menor custo).
Eu gosto de lembrar uma história que combina métricas, uma missão conjunta da Nasa e da Agência Espacial Europeia e uma sonda de U$ 320 milhões que se espatifou em Marte. O motivo? Na fase final de aproximação do planeta, enquanto os técnicos da Nasa liam as métricas baseados no sistema Imperial (pés, milhas, etc) o centro de controle europeu utilizava o sistema métrico (metros, quilômetros, etc). Conclusão: chegar em uma metodologia aceitável para todas as partes e eficiente do ponto de vista operacional é apenas o início, bastante trabalhoso, de um longo processo.
E aqui entra em ação o segundo pilar de um sistema de mensuração: a confiança. Nos últimos 20 anos perdi a conta das empresas que apareceram propondo um sistema que retratava de maneira mais fiel as novas formas de consumo de mídia. Nenhuma vingou, até agora. Porque não se trata apenas de uma decisão baseada na racionalidade científica (a escolha de um sistema mais eficiente sobre outro), mas também na aceitação coletiva de que aquela métrica é a representação mais próxima possível da “realidade”. Construir esse consenso, e um sistema de controle que assegure sua eficiência, é um processo que leva tempo e exige muito capital financeiro e humano. Provavelmente é o que vai acontecer tanto com o novo sistema que a Nielsen deve implantar a partir de 2023 quanto com as diversas concorrentes que tem agora uma “janela de oportunidade” inédita (a última semelhante foi nos anos 60, quando uma investigação do Congresso americano deu origem ao Media Ratings Council, para evitar a regulação estatal da área).
As consequências desta instabilidade provavelmente irão fortalecer ainda mais as plataformas tecnológicas (sim, aquelas que você sabe quais são), que por sua vez se recusam a serem auditadas por entidades do mercado e tem um sistema de “accountability” no mínimo opaco –mas que sabem se vender como um verdadeiro “censo” do consumo de conteúdo no formato IP (embora não seja bem assim, mas este é tema para outro artigo…). O resultado deve ser uma migração ainda mais rápida dos investimentos para os meios digitais e um esforço redobrado dos departamentos de mídia para justificar a distribuição das verbas. Não sei se esta polêmica vai chegar até o nosso mercado. Mas se chegar será mais um fator de estresse para um 2022 que já parece bem complicado…
*Crédito da foto no topo:
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