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Aprendizados do jornalismo inglês

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Opinião

Aprendizados do jornalismo inglês

Se posicionar, exercer o princípio do contraditório, fiscalizar o poder são e sempre serão as premissas básicas do jornalismo profissional


11 de fevereiro de 2020 - 10h41

(Crédito: Vectorios2016/ iStock)

Entre o final de janeiro e os primeiros dias de fevereiro — com o início oficial do Brexit no meio —, dois outros fatos vindos da Inglaterra chamaram a atenção, dessa vez para o ofício do jornalismo em tempos distópicos. Na quarta-feira 29, o jornal britânico The Guardian anunciou que não aceitará mais anúncios pagos por empresas de combustíveis fósseis. Trata-se do primeiro grande veículo de imprensa internacional a tomar a decisão de se afastar dos investimentos das maiores fontes de emissão de gases de efeito estufa.

A iniciativa faz parte de um movimento maior e mais complexo. Em 2019, o Guardian atualizou seu manual de redação e adotou o termo “emergência climática” para dar a real dimensão e a urgência de se enfrentar a mudança do clima. A empresa que publica o The Guardian e The Observer também tem o compromisso institucional de neutralizar todas as suas emissões de carbono até 2030.

O comunicado de rejeitar esses anúncios foi feito em nota conjunta pela diretora executiva interina Anna Bateson e pela diretora de finanças Hamish Nicklin. As executivas lembraram na nota que o aquecimento global é “o desafio mais importante dos nossos tempos” e destacaram as notícias produzidas pelo jornal sobre como o lobby de empresas de energia prejudica os avanços globais nesta agenda.

Ambientalistas têm dito que as empresas de petróleo, carvão e gás gastam em propaganda para divulgar investimentos modestos em energias renováveis enquanto continuam a colocar grandes aportes de recursos na extração de fósseis.

As diretoras reconhecem que o anúncio é um golpe para o modelo de negócios do Guardian. Os jornais, de modo geral, vêm enfrentando dificuldades financeiras nos últimos anos. Elas reconheceram que a decisão “pode tornar nossas vidas um pouco mais difíceis no curto prazo”. Disseram, ainda, que alguns leitores gostariam que a decisão englobasse também os anúncios de carros e férias (leia-se companhias aéreas), mas que “a interrupção destes anúncios seria um duro golpe financeiro e pode nos forçar a fazer cortes significativos no jornalismo”.

Para ter ideia do que está em jogo com essa decisão, a British Petroleum (BP), maior empresa petrolífera do Reino Unido, é o 220 maior anunciante do meio jornal localmente, com investimento em publicidade anual da ordem de 9 milhões de libras esterlinas (algo em torno de R$ 50 milhões) e vem aumentando seus investimentos nessa mídia com incremento de 24,73% em 2019 em relação ao ano anterior. Os dados são da Newsworks, entidade que congrega os jornais ingleses.

Vale lembrar que o jornal faz parte do Guardian Media Group, propriedade do The Scott Trust Limited, uma fundação criada em 1936 e que se tornou sociedade anônima em 2008. Seus lucros são reinvestidos em jornalismo, e não para beneficiar um proprietário ou acionistas.

Em janeiro, a ativista sueca Greta Thunberg criticou jornais que aceitam anúncios de empresas ligadas ao setor de combustíveis fósseis. Ela disse que conhecia apenas o caso do jornal sueco Dagens ETC, que se recusava a aceitar este tipo de publicidade desde setembro. “Qual será o primeiro grande jornal internacional a ter a liderança nisso?”, questionou Greta. O Guardian acaba de dar essa resposta.

Na segunda-feira 3, em um dos endereços mais famosos de Londres — o número 10 da Downing Street, um grupo de jornalistas decidiu não participar de uma entrevista convocada pelo governo britânico sobre o Brexit após assessores do premiê Boris Johnson barrarem a participação de alguns veículos no evento. Tudo começou quando o governo convocou jornalistas para a tal entrevista técnica de divulgação de detalhes da proposta de acordo comercial que Londres deve apresentar à União Europeia.

Ao chegarem para a conferência, porém, os profissionais da imprensa foram divididos em dois grupos de acordo com os veículos para os quais trabalham. Lee Cain, diretor de comunicação de BoJo (apelido de Boris Johnson) ordenou aos repórteres de um dos lados que deixassem o local. Estavam nesse bloco jornalistas dos sites Huffington Post e PoliticsHome, dos jornais The Mirror, The Independent e inews e da agência de notícias Press Association, entre outros.

Em resposta a esse comportamento pouco republicano, os jornalistas do bloco autorizado a permanecer na entrevista — incluindo BBC, The Guardian, Financial Times, The Telegraph, Daily Mail e The Sun — também deixaram o local.

Em um dos capítulos da série Years and Years (HBO, 2019), a personagem Viv Rook, brilhantemente interpretada por Emma Thompson, cuja ascensão ao poder começa quando ela se candidata à deputada e forma seu próprio partido até que, finalmente, passa a ser a inquilina de Downing Street, 10, protagoniza uma situação cada vez mais comum nos tempos atuais.

Durante uma coletiva de imprensa, uma jornalista a questiona firmemente sobre supostos conflitos de interesse entre seus negócios e o comando do governo britânico. Rook não responde à pergunta e diz que a jornalista está disseminando fake news e a chama de inimiga do povo inglês. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.

Se o The Guardian paga um preço alto ao banir publicidade de companhias petrolíferas, ele está também se posicionando diante de um cenário que exige medidas difíceis. Ao assumi-la publicamente, sai na frente e pode influenciar outros agentes em uma necessária agenda de transformação.

A postura dos jornalistas que deixaram a entrevista depois de BoJo barrar alguns veículos mostra um grau de solidariedade inimaginável no Brasil. Infelizmente.

Se posicionar, exercer o princípio do contraditório, fiscalizar o poder são e sempre serão as premissas básicas do jornalismo profissional. Em democracias mais maduras, como a inglesa, assistimos a esses dois fatos recentes com uma ponta de inveja. Que essa sensação sirva de inspiração. Para além da polarização, há a saudável necessidade de se entrar em contato com visões de mundo distintas e saber navegar em meio a essas diferenças.

*Crédito da foto no topo: Reprodução

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