As periferias dominam as narrativas da música urbana

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Opinião

As periferias dominam as narrativas da música urbana

Acredito que os próximos passos no Brasil deverão ser dados tendo em vista a chegada de novos players no mercado e em sentido à sua constante profissionalização


27 de outubro de 2023 - 6h00

Mudam os artistas e as canções, mas os gêneros permanecem. Na semana em que escrevo este artigo, como nas mais de cem anteriores, a presença da música urbana nos tops 10 referência do Spotify e da Billboard, do Brasil e dos Estados Unidos, é perceptível a olhos nus. Some a isso o recente anúncio de uma nova categoria – Melhor Interpretação de Música Urbana – no Grammy Latino e temos um fenômeno consolidado globalmente. Originada nos guetos dos quatro cantos, capitaneada por artistas, selos e produtores também, em sua maioria, crias das comunidades, a música urbana tem no Brasil um de seus mais criativos mercados.

Há 20 anos, quando iniciava minha carreira no departamento de relações artísticas da MTV Brasil, a periferia já dava sinais da sua força músico-cultural. À época, a emissora era praticamente a única a apoiar a cena do rap nacional, então em ebulição. Brotavam artistas novos a todo momento e clipes de grupos como RZO, Racionais MC’s, DMN, SNJ e De Menos Crime, entre outros, alternavam-se na programação diariamente. Produzíamos o Yo! MTV Raps, o primeiro programa sobre a cultura hip hop da televisão brasileira, incluíamos artistas de rap no Video Music Brasil e apoiávamos projetos como o Prêmio Hutuz, então a principal premiação do hip hop no país.

Sabotage, cuja promissora carreira foi tragicamente interrompida, estava no cinema, ao lado do titã Paulo Miklos, em “O Invasor”, de Beto Brant. Da Zona Sul de São Paulo, Rappin’ Hood, artista do primeiro escalão da extinta gravadora Trama, já misturava rap com samba e outros gêneros musicais. E o rapper Xis, original da Zona Leste paulistana, autor do hino “Us Mano e As Mina”, atravessava fronteiras, rimando brilhantemente como feat em uma das canções do Acústico Cássia Eller, um dos mais notórios produtos daquela encarnação da MTV Brasil.

Impossível me esquecer da catarse que foi o histórico show dos Racionais no Galpão Casaluce, no Brás, São Paulo, em 2002. Depois de 10 anos sem novidades, o quarteto celebrava o lançamento de “Nada Como Um Dia Após o Outro Dia”, com mais de 100 mil cópias vendidas. Sem divulgação alguma que não lambe-lambes nos muros das periferias paulistanas, a apresentação reuniu sete mil pessoas e era mais uma prova absoluta do surgimento, a partir da sede e do poder de expressão das periferias das grandes cidades, de um novo Brasil.

De lá para cá, como executivo do mercado de entretenimento, desempenhando funções-chave no entendimento, na tradução e no fomento da música urbana, acompanho o crescente domínio das culturas de rua na narrativa musical brasileira. Hoje, com o aumento populacional das cidades e a democratização do acesso ao digital, o discurso pertence às periferias. Seus likes e plays impactam a indústria cultural e fizeram do funk, do rap e agora o trap líderes de segmento, dividindo o protagonismo com o sertanejo. Da proximidade desse universo surgiu este ano a Canguru Records, meu selo de música urbana em parceria com a Universal Music. Nosso propósito é proporcionar experiências premium com nossos artistas, por meio de projetos especiais em parceria com todas as áreas do entretenimento, como a moda, o esporte, os games e a publicidade.

No mundo, segundo o Spotify, o hip hop é o segundo gênero mais popular da plataforma. Por aqui, a tradicional Lacoste, que por anos tentou dissociar-se das periferias, foi praticamente obrigada a se render aos ritmos das favelas e eleger MC Hariel, ícone do funk, como embaixador da marca no Brasil, com direito à presença em Roland Garros, reduto sagrado da grife francesa. Dados da FGV apontam que em 2009 o funk movimentava algo na casa dos R$ 10 milhões mensais no Rio de Janeiro. Já em 2019, foram mais de R$ 40 milhões no mesmo período. E, se você ainda se perguntava se o funk carioca seria capaz de ganhar o mundo como fizeram o reggaeton e o trap porto-riquenho e colombiano, Anitta deu a resposta: a cantora e entertainer internacional trouxe para Honório Gurgel o prêmio de melhor clipe latino do MTV VMA´s.

Vivemos tempos em que a música urbana é protagonista. As grandes maisons da moda internacional, verdadeiras intérpretes das mudanças de paradigmas na indústria do entretenimento e das celebridades, conectaram-se, direta ou indiretamente, a ela. O melhor exemplo disso é a contratação de Pharrell Williams como diretor criativo do masculino da Louis Vuitton. Rihanna, imensa dentro e fora da música, revoluciona a indústria de beleza com a Fenty Beauty, sua marca inclusiva de cosméticos para todos os corpos e todas as peles, inaugurando a nova era da propriedade intelectual.

Acredito que os próximos passos no Brasil deverão ser dados tendo em vista a chegada de novos players no mercado e em sentido à sua constante profissionalização. É preciso submeter-se às melhores práticas dessa indústria que em 2021 gerou, de acordo com relatório da associação de produtores fonográficos associados Pró-música, R$ 2,1 bilhões, passando pelas etapas fundamentais do processo – o cumprimento de contratos, a busca incansável pela entrega da melhor experiência para público e marcas, a criação de projetos especiais que comuniquem de maneira assertiva. E, claro, pela escolha dos melhores artistas, aqueles que reinem em suas comunidades, que tenham claramente definidas suas personas comunicacionais e sejam, cada uma à sua maneira, as vozes do nosso tempo.

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