Autenticidade, greenwashing e o futuro das causas sociais
Não sou ingênua de achar que a publicidade pode salvar o mundo, mas ela tem uma dimensão maior que não pode ser abandonada
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Um dos desdobramentos do último Cannes Lions tem sido o debate em torno do arrefecimento de campanhas de impacto social face aos desafios mais complexos do mundo contemporâneo. O que parecia ser um movimento consistente e duradouro, vivenciado nos últimos anos, começa a dar sinais de ter perdido o fôlego, ao menos por enquanto. Esse atual refluxo tem duas vertentes importantes.
A primeira se deve à pressão da sociedade para que a relação da marca com a causa seja cada vez mais autêntica, evitando assim qualquer associação com greenwashing, o que, por si só, não é algo negativo. Siginifca, no entanto, que é preciso ter um pouco mais de lastro nas práticas para dar sustentacão ao discurso. A segunda, de origem econômica e política, tem a ver com a realização, em 2024 e nos próximos anos, de um amplo ciclo eleitoral acirrado (e polarizado) em diversos países do mundo. Nesse contexto, as marcas estão realocando seus recursos para investimentos mais seguros e previsíveis em tempos de volatilidade política.
Exatamente esse segundo ponto foi tema de um dos painéis do último Cannes Lions. Com medo de cancelamentos, como as marcas podem se posicionar e navegar nesta maré revolta, marcada por controvérsias e polarizacão? Richard Edelman, presidente e CEO da agência independente de relacões públicas que leva seu sobrenome, levantou essa questão no evento e trouxe alguns dados para dar subsídios a esse debate.
Segundo o Trust Barometer, pesquisa anual global da Edelman, 60% das pessoas dizem comprar marcas com base em suas convicções políticas. Além disso, 70% dos consumidores acreditam que as marcas precisam se posicionar em questões sociais. Isso inclui uma proporção de 5 para 1 em questões climáticas, 4 para 1 em pagamento justo e 2 para 1 em raça e diversidade.
Outro ponto levantado no estudo foi o aumento do nacionalismo. Edelman apresentou também dados mostrando que oito em cada dez pessoas afirmam não comprar marcas de mercados específicos devido à localização de suas sedes. Em outras palavras, consumidores americanos evitam marcas chinesas e vice-versa, destacando a complexidade das decisões de compra em um cenário global cada vez mais polarizado.
Bozoma Saint John, ex-CMO da Netflix, autora, empreendedora e profissional que costuma frequentar Cannes seja como jurada ou palestrante ao longo dos últimos anos, refletiu sobre a entrada da política na corrente sanguínea das marcas: “A ideologia tornou-se parte da identidade, e as pessoas agora consideram se as marcas refletem suas amizades e trabalhos. Para os profissionais de marketing, enfrentar a política tornou-se uma vantagem competitiva, desde que entendam seu público.”
A experiência de Bozoma na Apple, durante a eleição presidencial de 2016, exemplifica como as empresas precisam rapidamente se adaptar e definir seus pontos de vista. Ela dividiu com a plateia que durante a campanha presidencial que tinha Donald Trump e Hillary Clinton como candidatos, a Apple assumiu publicamente seu apoio à candidata democrata, enfrentando os ônus e os bônus dessa escolha. Mas, mesmo assim, foi uma decisão importante para delimitar território e fortalecer a relação com os simpatizantes de Hillary.
Luis Miguel Messianu, que até o ano passado era sócio da Alma e diretor global de criação de McDonald’s na DDB e agora comanda a consultoria em comunicação estratégica com foco em público latino MEL, enfatizou que o silêncio não é mais uma opção para as marcas, pois isso pode ser visto como cumplicidade. Ele destacou a importância da coragem criativa e da liderança com convicção. “As marcas precisam ter uma posição clara e inspirar os consumidores a segui-las, considerando valores corporativos e o tratamento dos funcionários como parte da equação.”
Richard Edelman concluiu que as equipes de marketing precisam de mais diversidade ideológica. Ele argumentou que é necessário incluir pessoas com diferentes visões de mundo para criar uma “grande tenda” no marketing. Isso é essencial para abordar questões sociais complexas e responder às preocupações dos consumidores, que, muitas vezes, se sentem ignorados ou marginalizados.
Há poucos dias, foi destaque no Meio & Mensagem reportagem que trouxe as dificuldades e desafios que os CMOS têm com a agenda ESG a partir de um levantamento do instituto Data-Makers. Realizado em parceria com a CDN, o estudo entrevistou 106 CMOs brasileiros de organizações de diferentes tamanhos e segmentos e evidenciou a discrepância entre importância e conhecimento. Enquanto 90% dos líderes reconhecem a relevância da temática, somente 20% dizem conhecer a disciplina em profundidade.
Para uma ampla maioria dos CMOs (76%), a imagem da marca é a principal motivação para a adoção do ESG nas estratégias de marketing. Em seguida, entre os motivadores, aparecem impacto positivo para a sociedade (74%); reputação corporativa (63%); atração e retenção de talentos (37%); e, por fim, pressão de stakeholders (31%).
Por outro lado, segundo os executivos, a principal barreira para adoção do ESG é a falta de recursos financeiros (47%), o que reafirma o descompasso entre visibilidade e atuação prática. Ausência de métricas e KPIs (42%), falta de profissionais preparados (41%), o fato do tema não ser prioridade (37%) e pressão por resultados de curto prazo (33%) são os outros pontos de fricção.
Esta pesquisa demonstra a lacuna que existe dentro das corporações entre prática de negócios e a agenda ESG. Se por um lado, os motivadores vão na direção certa, na concretização das ações, no entanto e, consequentemente, na comunicação, reside uma grande brecha a ser preenchida. É claro que há um telhado de vidro generalizado com diferentes graus de transparência que varia de caso a caso, mas essa preocupação por si só, me parece importante e demonstra algum tipo de responsabilidade dos profissionais de marketing com relação às praticas ligadas à agenda ESG.
Cheguei a ver profissionais de criação comemorando a volta do humor e da publicidade “raiz” neste Cannes Lions como um resgate da velha e boa propaganda, dando a entender que o que se fez nos últimos anos, não foi algo relevante. Não sou ingênua de achar que a publicidade vai salvar o mundo, mas é inegável que o poder econômico das marcas e das corporações que as controlam é capaz de influenciar (e mudar) políticas, economias e comportamentos. É essa dimensão maior da comunicação que me fascina e para a qual há sim muito espaço ainda a ser percorrido. Em alguns cenários requer fazer escolhas políticas e ser, de fato, ativista e defender causas muitas vezes polêmicas.
“Naturalmente, os executivos de marketing não têm segurança em comunicar ou desenvolver ações ESG. Como agravante, a reação negativa dos consumidores acaba sendo um tiro no pé para a imagem da marca. Ou seja, é um problema com o qual os próprios CMOs terão que lidar”, acrescenta.
Apesar dessa conjuntura, a perspectiva para 44% dos executivos é de aumento dos investimentos em ESG e sua comunicação em marketing nos próximos 12 meses, revelando otimismo dos CMOs. Outros 32% afirmam que os aportes devem se manter estáveis e apenas 6% indicam retração.
Nesta edição do estudo, os CMOs mencionam 41 companhias que, na opinião deles, são exemplos positivos no assunto. Os destaques foram Natura, Itaú, O Boticário, Coca-Cola e Heineken. Fudissaku pontua, no entanto, que houve, no geral, baixo índice de menções, “o que indica um espaço a ser ocupado pelas marcas”.
Conforme demonstrado no Cannes Lions 2024, vários fatores contribuíram para a diminuição das campanhas focadas em impacto social nos últimos meses:
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