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Beija eu, me beija

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Opinião

Beija eu, me beija

Foto que, para muitos, é um dos grandes símbolos do romantismo, na verdade, é uma história de assédio muito antes de a palavra começar a ser usada


6 de outubro de 2023 - 6h00

Listas nem sempre são confiáveis. Os melhores discos. Os melhores livros. Os melhores filmes, jogadores, publicitários. Tudo é passível de discussão.

Mas, assim como Jimi Hendrix possivelmente estaria em qualquer lista de maiores guitarristas, o “V-J Day in Times Square” também teria grandes chances de aparecer na lista de fotografias mais icônicas. Ao lado da garotinha nua correndo no Vietnã, do estudante chinês na frente dos tanques na Praça da Paz Celestial e de Albert Einstein com a língua de fora.

Conhecida muitas vezes como “O beijo”, ela mostra o que parecem ser um marinheiro e uma enfermeira apaixonados. A foto foi tirada por Alfred Eisenstaedt em 14 de agosto de 1945, dia da rendição japonesa que marcou o fim da 2ª Guerra Mundial.

A conjunção do beijo com a euforia do fim da guerra e o contraste entre a roupa branca da mulher e o uniforme escuro do homem naquele casal, onde não podemos identificar os rostos, fez da foto uma espécie de ícone do amor.
Nada poderia estar mais distante da verdade.

A enfermeira, que na realidade era uma assistente de dentista, se chamava Greta Zimmer Friedman. E ela, com certeza, tinha o que comemorar. Greta chegou aos Estados Unidos em 1939, uma entre tantos judeus que conseguiram fugir da Áustria. Seus pais não tiveram a mesma sorte e morreram em campos de concentração.

Por motivos distintos, George Mendonsa também estava feliz. Ele fazia parte dos sobreviventes da frota do almirante Bull Halsey, na qual mais de 800 colegas morreram em decorrência da passagem de um tufão. O fim da guerra significava não ter que voltar para o Pacífico. Na empolgação das comemorações e com um pouco de álcool no sangue, ele agarrou aquela mulher desconhecida que passava na sua frente e simplesmente a beijou. Os dois nunca tinham se visto.

“Eu não o vi chegar, mas subitamente estava presa num abraço forte”, contou Greta. “O homem era muito forte. Eu não estava beijando ele, ele estava me beijando”. Pois é. A foto que, para muitos, é um dos grandes símbolos do romantismo, na verdade, é uma história de assédio muito antes de a palavra começar a ser usada.

Corta para a final da Copa do Mundo feminina. A Espanha acaba de escrever seu nome na história, ganhando sua primeira taça do mundo. E quase 80 anos depois, mais um beijo entra para a história pelos motivos errados. O presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, Luis Rubiales, está cumprimentando as campeãs e, depois de dar um abraço na jogadora Jenni Hermoso, segura a cabeça dela entre suas mãos e a beija na boca.

Escrevo sobre beijos. Mas, na verdade, não é sobre isso. Quando eu comecei a fazer terapia, ouvi uma coisa na primeira sessão que levo comigo até hoje: um problema só passa a ser um problema quando você reconhece que ele existe. E, vamos combinar: ele existe.

Nós, que trabalhamos com comunicação, temos a rara oportunidade de não só refletir a sociedade como ajudar a torná-la, de alguma maneira, um lugar um pouco melhor.

Um beijo forçado — que, ao invés de acabar impune, acabou em processo — mudou a história de muita gente em uma agência onde eu trabalhei. Um beijo afetuoso de Thammy Gretchen no filho num comercial de Natura mudou a história da propaganda de Dia dos Pais.

Gosto de pensar que princípios têm esse nome porque devem estar no início de qualquer decisão. As jogadoras da Espanha já anunciaram que se recusam a jogar pela seleção enquanto Rubiales não fosse destituído do cargo. Toni Kroos rejeitou uma oferta milionária para jogar na Arábia Saudita porque não aceitaria ir para um lugar que não respeita os direitos humanos.

O beijo deveria ser a menor distância entre duas paixões. Mas, enquanto ele for capaz de ofuscar coisas como liberdade individual, direito ou até a conquista de uma Copa do Mundo, a gente ainda vai estar muito longe disso.

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