Ben Parker e o marketing de influência

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Opinião

Ben Parker e o marketing de influência

As lições de uma das mais poderosas histórias da cultura pop


9 de janeiro de 2024 - 11h22

Como leitor desta publicação, é impossível não saber da crise recente em torno da agência Mynd e a Banca Digital – mas se você não é fã de cultura pop, provavelmente não sabe quem é Ben Parker. Ele, contudo, oferece talvez a maior lição que podemos extrair do trágico episódio envolvendo o suicídio da jovem Jéssica Canedo e as publicações de diferentes páginas de fofoca, assim como declarações de alguns dos representantes destes últimos a partir dos respectivos perfis pessoais.

“Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”.

A máxima de Ben Parker – tio de Peter Parker, mais conhecido pelo seu alter-ego Homem-Aranha na criação de Stan Lee para a Marvel – cai como uma luva para o momento que estamos vivendo. Se o “sentido-aranha” e a capacidade de projetar teias ultra-resistentes a partir dos pulsos (ainda) são exclusividade da ficção, o poder que determinados influenciadores e empresas de comunicação desenvolveram ao longo dos últimos anos é bem real. Aparentemente, esses indivíduos e organizações ainda não entenderam completamente a extensão e a profundidade da responsabilidade que vem na esteira deste poder.

Antes de prosseguir, quero fazer um disclaimer: eu não acredito que a Mynd seja o cérebro por trás de campanhas coordenadas de desinformação da população, nem tampouco que tenha agido deliberadamente em favor de candidato X ou Y nas últimas eleições. As citações eventualmente feitas às empresas do seu grupo econômico e/ou seus representantes neste texto são meramente ilustrativas, sem inferir qualquer tipo de dolo às ações dos citados. Acredito que precisamos extrair lições importantes deste episódio para contribuir com a evolução da indústria de comunicação em benefício da sociedade e do mercado.

Perfis de Entretenimento

O nome social dado às páginas de fofoca é algo que encapsula bem o seu propósito – mas que não necessariamente reflete de maneira precisa o entendimento que a audiência tem acerca do conteúdo publicado por essas contas, ou mesmo o que a própria Fatima Pissarra expressou em sua entrevista a este veículo na última quinta-feira, 4 de janeiro. Reproduzo abaixo um trecho que considero temerário:

“Desde quando a imprensa é imprensa, a mesma notícia sai em todos os veículos, basicamente porque é uma notícia. A notícia que todo mundo está interessado em saber é a notícia que está na revista, na televisão. Os perfis, potencialmente, devem seguir a mesma coisa. Cada um posta a notícia que todos estão falando, seja no Fofocalizando, no Fantástico, na Record.”

É aí que começa o problema. Notícia é diferente de opinião, de entretenimento, de fofoca. Notícia precisa de fontes verificadas, cruzamento de dados, confirmação. Notícia pressupõe abordagem informativa e impessoal. O que essas contas publicam não é notícia, nem deveriam elas serem caracterizadas coletivamente como “imprensa”. Fatima, formada em jornalismo e psicologia, não pode alegar que não sabe disso. Essa confusão, reforçada por ela em sua entrevista, está na raiz de distorções perigosas que as plataformas sociais vêm causando na forma como as pessoas consomem e interpretam informações sobre o mundo, a política e o cotidiano. Sem saber a diferença entre notícia e entretenimento, o público trata fofoca como fato, boato como “verdade que a mídia não mostra” – formando opiniões e agindo baseado nesta premissa. Se isso fez soar o seu alarme do “tio do ZAP”, não é por acaso: a dinâmica é a mesma.

Os veículos da imprensa tradicional, ainda que não tão próximos da perfeição e da imparcialidade, estão sujeitos a uma série de mecanismos de accountability, pesos e contrapesos que simplesmente inexistem para blogs e perfis de entretenimento. Indo além, os veículos da imprensa tradicional também trabalham em torno de um princípio de isenção, de um trabalho essencialmente informativo (mesmo com reconhecidos vieses). Isso também não é verdade para influenciadores e perfis de entretenimento, os quais não possuem qualquer compromisso ético com a imparcialidade.

Reforço que os pontos acima só se tornam um problema ao confundir o conteúdo dessas contas com o jornalismo produzido pela imprensa. Contudo, isso nos remete a uma outra preocupação, que vou contextualizar reproduzindo outro trecho da entrevista:

A Mynd intermedia. Levamos oportunidades que julgamos interessantes e o agenciado faz ou não, mas sempre com hashtag “publi”. O que não tem “#publi”, a Mynd não interfere, não olha, não edita, nem fica sabendo. Eu nem sei o que as pessoas postam.

Eu honestamente acredito também que a agência não pauta de forma coordenada o conteúdo editorial dessas contas, apesar de claramente fazê-lo com conteúdo publicitário. Não é difícil entender e aceitar que, no jogo das polêmicas e dos click-baits, os próprios administradores de cada perfil, bem como suas equipes, vão estar constantemente atrás do conteúdo mais quente e com maior potencial de engajamento e viralização, daí as inúmeras reproduções do mesmo conteúdo em diferentes perfis. Essa linha de argumentação já havia sido adotada, de forma consistente com a resposta a esta crise, em julho de 2022, numa resposta aos questionamentos do portal Aos Fatos sobre reportagem intitulada “Rede de perfis de fofoca lucra com publis e pauta a internet – até com desinformação”.

Contudo, uma agência com 400 funcionários e faturamento de R$ 550 milhões não pode se dar ao luxo de dizer que não olha, não acompanha e nem fica sabendo do que publicam os perfis para os quais ela mesma encaminha centenas de milhões de reais em verbas de publicidade dos anunciantes. Ambos números, inclusive, que afastam a empresa da imagem de pequena declarada em outra resposta à entrevista já citada, sob qualquer modelo que se observe. Segundo IBGE, BNDES, Sebrae etc, a Mynd é uma empresa grande – e o correto entendimento das responsabilidades que essa condição acarreta pressupõe antes de mais nada perceber-se como tal. Não é aceitável, neste patamar, em um momento dizer que possui um megafone que pauta a internet brasileira, que quer ser a Unilever dos influenciadores, e no momento seguinte jogar a cartada de que é um mero broker comercial, socraticamente sustentando que só sabe que nada sabe.

A própria Unilever, junto com outros gigantes como Coca-Cola, Starbucks e Diageo, chegaram a declarar em 2020 que suspenderiam ações publicitárias nas redes sociais. A razão dada foi a falta de ação dessas plataformas em relação à disseminação de discurso de ódio dentro das mesmas. Se as marcas esperam que o provedor de tecnologia tenha postura ativa neste sentido, o que leva uma agência a acreditar que pode não olhar, não acompanhar ou sequer ficar sabendo do que publicam os perfis agenciados por ela e que recebem cifras relevantes dessas mesmas marcas? Mais de um bilhão de seguidores e cem mil impressões indicam que isso é insustentável. A responsabilidade não é a de julgar, mas a de ter o discernimento para identificar, reconhecer, mensurar e gerir os riscos inerentes à sua atividade, encontrando uma forma de gerar valor simultaneamente para seus clientes, o negócio e a sociedade.

(Auto)Regulação, ética e o futuro da comunicação

Vejo este momento como um marco importante no amadurecimento do mercado brasileiro de comunicação. Não é possível continuar a tapar o sol com a peneira, tampouco acreditar que a solução virá de qualquer espécie de regulação vinda do Congresso ou de uma canetada do Executivo. Com a velocidade, a extensão e a profundidade das transformações que tanto a indústria da tecnologia como a da comunicação estão sofrendo nas últimas décadas – e que não apenas não dão sinais de arrefecer, como tendem a se intensificar com o advento da inteligência artificial, avatares, deep fakes e afins – qualquer texto legislativo tende a sair do forno obsoleto e inadequado.

A única ação sensata e realmente eficaz que o poder público pode tomar em relação ao tema tem efeitos exclusivamente no longo prazo: trata-se da inclusão da “alfabetização de mídia” (media literacy) no currículo obrigatório das escolas do país. O conceito compreende a capacitação do indivíduo para realizar uma avaliação adequada da natureza, do propósito e de todo o contexto que envolve uma mensagem ou informação recebida (incluindo emissor, veículo e seus stakeholders, enquadramento, etc), para poder extrair sentido e tirar suas próprias conclusões sobre a mesma, diminuindo sua vulnerabilidade perante qualquer forma de manipulação dos fatos ou distorção da realidade. Trata-se, porém, de algo que começaria a trazer efeitos práticos observáveis em não menos do que uma década – um tempo que não temos.

Em 2009, a alfabetização em mídia surgiu em um projeto de consultoria em inovação que liderei na Mandalah (onde era gerente de projetos na época) para uma das escolas mais conceituadas de São Paulo. Mostrou-se como um pilar fundamental do conjunto de habilidades e competências que os estudantes desta escola que se formassem em 2025 deveriam possuir. Da posição em que estamos agora no início de 2024, arrisco dizer que acertamos a previsão na mosca. Arrisco dizer também que já perdemos um tempo demasiadamente grande e precioso.

Mas se a interferência estatal no assunto é ineficaz, o que fazer? Cabe a nós, lideranças executivas, empreendedores, influenciadores, criadores de conteúdo e profissionais da comunicação de uma forma mais ampla abordarmos o tema de forma transparente, objetiva, honesta. A solução pode passar por órgãos de autorregulação, como o Conar, mas é fundamental que passe pela implementação de mecanismos de governança adequados nas empresas do nosso mercado.

O futuro da comunicação não será de menos opinião e posicionamento, será de mais. Não será de menor complexidade, será de mais. Não será de menores riscos, será de mais. Ao acrescentar uma camada de escala para uma comunicação hiper-fragmentada, alavancada por sistemas digitais que não são regidos por valores éticos nem submetidos necessariamente ao crivo de humanos, temos a oportunidade de ganhos exponenciais – mas também o risco de perdas catastróficas. Ignorar ou negligenciar essa possibilidade seria o nosso maior erro e precisamos começar a desenvolver salvaguardas imediatamente.

Da mesma forma que Mark Zuckerberg teve que enfrentar as denúncias de negligência da Meta em relação à disseminação de discurso de ódio, fake news e violação de privacidade em suas plataformas e segue demonstrando ser um dos homens de negócio mais hábeis e competentes da sua geração, à frente de uma das maiores e mais lucrativas empresas do seu setor, eu não tenho dúvidas de que Fatima será capaz de reverter esta crise e continuará sendo uma das profissionais mais brilhantes da indústria da comunicação no Brasil, assim como a Mynd continuará sendo uma das maiores e mais lucrativas empresas do seu segmento. Basta entender e seguir as lições de Ben Parker. A alternativa? Arriscar terminar num roteiro de The Boys.

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