Burn, baby, burn
Sofremos da síndrome de Forrest Gump; um dia começamos a correr e não paramos mais, sem saber exatamente aonde estamos indo
Sofremos da síndrome de Forrest Gump; um dia começamos a correr e não paramos mais, sem saber exatamente aonde estamos indo
“Avisa que se não vier no sábado não precisa nem voltar no domingo”. Essa era uma frase ouvida corriqueiramente nos corredores de uma das agências em que trabalhei. Aquele tipo de brincadeira que, na verdade, era bem mais uma ameaça (nem tão) velada, disfarçada de brincadeira.
Outro lugar tinha um ditado famoso de que “adiantar aqui não adianta” porque, por mais que você fizesse, o chefe sempre derrubava tudo e começava do zero, quase sempre às custas da madrugada de muitas pessoas para tentar chegar a outra coisa que normalmente nem ele sabia o que era. E que, não raras vezes, na manhã seguinte voltava para uma das primeiras ideias descartadas.
Já vi pessoas usando truques como deixar um casaco na cadeira e até uma carteira em cima da mesa para dar a impressão de que não tinham ido embora (afinal, ir embora podia pegar mal, né?). Vi lugares com horário para entrar, mas nunca para sair. Vi cenas de assédio e alguns casamentos acabarem (também vi alguns namoros começarem, mas isso é assunto para outra hora).
Todo mundo tem uma história dessas para contar. E o fato de todo mundo passar por isso não é obra do acaso. É o resultado de um processo que busca incessantemente por resultados cada vez mais rápidos, mais impactantes, mais perfeitos, gerando um ciclo vicioso de superação e exigências infinitas. Só que isso tem um preço.
Na publicidade, onde a pressão por criatividade e produtividade é crônica, o burnout não é uma exceção, mas uma regra não dita, uma sombra silenciosa que se espalha nas mesas de trabalho. Um caso recente acabou na trágica morte de um criativo do mercado de Brasília.
O problema não é exclusivo da propaganda. O Brasil é líder mundial em casos de ansiedade. Pode ser pior? O pior é que pode. Também estamos na 2ª posição em índices de depressão e burnout e, segundo dados do INSS, esses casos aumentaram mais de 1.000% em apenas dez anos.
O resultado pode ser visto em fenômenos como o “quiet quitting”, termo usado para descrever a onda de demissões voluntárias de pessoas que simplesmente não veem mais sentido em um trabalho que as deixa à beira de um colapso por exaustão. É só olhar o número de profissionais que optaram por ser freelancers para perceber que essa realidade está bem mais perto do que imaginamos.
O problema, como o etarismo e a desigualdade de gênero, não é apenas reconhecer que ele existe. Mas, sim, quebrar o ciclo que o alimenta. E aí o furo é mais embaixo. Porque várias das empresas que fazem campanha bonitas sobre o ESG muitas vezes esquecem de colocar o S do social em prática apertando as agências com prazos e remunerações irreais. Aí começa um efeito bola de neve. Com equipes cada vez mais enxutas tendo que entregar um trabalho cada vez mais rápido. Muitas vezes terceirizando o problema para as produtoras. E assim sofremos da síndrome de Forrest Gump. Um dia começamos a correr e não paramos mais, sem saber exatamente aonde estamos indo. Só seguimos correndo, porque o ritmo pede, porque as demandas não param, porque a sensação de que não podemos parar é mais forte.
Mas até o Forrest descobriu que uma hora ia ter que parar. “Estou cansado. Não quero mais correr.” Ele não dá explicações complexas. E nem precisa. Simplesmente retorna para sua casa e sua vida deixando aquele ar de “fica a dica” para a multidão que, sem saber bem por que, também corria junto com ele. Talvez o fim do ano, época que costumamos fazer as tais reflexões, também seja o momento para encontrar o nosso propósito e decidir onde vamos parar. Antes que o cansaço – ou algo pior – decida por nós.
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