Cannes: a tempestade perfeita?
A crescente visibilidade das minorias, o aumento do valor da responsabilidade social das empresas e as possibilidades de personalização das tecnologias vão reconfigurar o significado cultural da publicidade
A crescente visibilidade das minorias, o aumento do valor da responsabilidade social das empresas e as possibilidades de personalização das tecnologias vão reconfigurar o significado cultural da publicidade
A tecnologia amplifica e acelera transformações que acontecem nas bases sociais e econômicas dos mercados. É uma pressão que vai aumentando de forma gradual, mas que ao atingir determinado patamar é capaz de abalar estruturas e redefinir modelos de negócio. Esse parece ser o caso para quem, como eu, acompanhou a cobertura da mídia especializada sobre o Festival Internacional de Criatividade de Cannes e conversou com alguns conhecidos que lá estiveram (soube que o tempo estava ótimo, mas vejam a opinião de Sir Martin Sorrell, mais abaixo).
Deste precário posto de observação, destaco dois aspectos. O primeiro é o reconhecimento de que novas forças sociais estão transformando a comunicação das marcas, como podemos ver pelos Grand Prix em Titanium, Glass, PR e Outdoor (“Fearless Girl”); Integrated e Promo & Activation (“Boost Your Voice”); e Film (“We’re the Superhumans”) – veja a lista completa em aqui. E o segundo é o questionamento crescente sobre a contribuição da publicidade no resultado dos clientes em um novo ambiente de negócios, representado de forma “paradigmática” pelo anúncio do Publicis Groupe de que em 2018 vai investir o dinheiro gasto no festival (que varia entre US$ 10 milhões e US$ 20 milhões, conforme a fonte) em uma plataforma de Inteligência Artificial chamada Marcel. É curioso como as iniciativas mais avançadas neste campo remetem aos fundadores das empresas que as desenvolvem (elementar, meu caro Watson?). Parece que para a nova direção da holding, o ROI não está mais em Cannes.
Em relação ao primeiro aspecto, a amplificação das novas forças sociais pela tecnologia vai colocar em xeque um dos pilares da atividade empresarial das últimas quatro décadas: a doutrina do “Shareholder Value”, a ideia de que a principal função de uma empresa é gerar o maior retorno possível para os acionistas. Esse embate entre forças sociais e organizações de mercado não é novo. No final dos anos 1960 um grupo de ativistas ambientais pressionava a General Motors a nomear um diretor para “representar o interesse público”. Em resposta, Milton Friedman, um dos principais economistas do século 20, escreveu no The New York Times que “a responsabilidade social das empresas é aumentar seus lucros”, denominando o conceito de responsabilidade social dos negócios como “socialismo puro” e os executivos que simpatizavam com esta noção como “marionetes das forças intelectuais que estão destruindo a sociedade livre”.
Encampada pelos simpatizantes de Reagan e Thatcher, essa visão sustentou a reengenharia, a ascensão dos “cabeças de planilha” e das mesas de compra. E gerou a obsessão pelo resultado de curto prazo, que visa eliminar tudo o que não é produtivo (em até 90 dias, bem entendido). E quem é o “não-produtivo”? Nesta visão, é a mulher que precisa se ausentar para atender as emergências familiares, o portador de necessidades especiais que pode demandar adaptações em equipamentos na fábrica ou escritório, o idoso que supostamente gera um maior gasto com saúde, etc.
Curiosamente, muito da tecnologia que hoje vemos foi desenvolvida com propósitos bélicos, mas se popularizou graças a esta mentalidade (a Apple não teria conquistado o mercado com seu primeiro computador se não fosse o Visicalc, o bisavô do Excel). E aqui volto ao que parece ser o outro ponto importante do festival neste ano. Esta mesma tecnologia está não apenas mudando a maneira pela qual produzimos e consumimos conteúdo, mas também servindo para aumentar a precisão com que estabelecemos relações de causa-efeito-custo-benefício no investimento publicitário. Mas quem se apropriou deste conhecimento não foram as agências nem veículos clássicos, mas sim as plataformas que utilizam estas tecnologias para conectar consumidores e produtores de bens, serviços e conteúdo. Espremidos entre essas diferentes forças, aos anunciantes resta questionar a eficiência econômica das agências, o controle de qualidade da distribuição do seu conteúdo e a “segurança das marcas”.
Essa combinação de transformações tecnológicas e sociais é a “tempestade perfeita”, segundo Martin Sorrell. Felizmente, não somos o primeiro setor a passar por isso. O aumento de eficiência gerado pela substituição do vapor pela energia elétrica só foi possível quando engenheiros e projetistas de máquinas entenderam que não precisavam mais montar suas linhas de produção ao redor de um grande motor central (e isso levou mais ou menos uns 20 anos). A crescente visibilidade das minorias, o aumento do valor da responsabilidade social das empresas e as possibilidades de personalização das tecnologias vão reconfigurar o significado cultural da publicidade. E para “encarar este touro” é preciso uma combinação entre estratégia, criatividade e visão de longo prazo. Algo que não se resolve em um trimestre ou invocando mantras como “vuca”, “crescimento exponencial” e “dados são o novo petróleo”.
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