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Como criar, se viver me adoece?

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Opinião

Como criar, se viver me adoece?

A paz de nós, pessoas pretas e periféricas em ascensão, vem carregada da violência que tentam nos impor e da solidão que nos cerca


31 de março de 2025 - 15h00

Sou mulher negra, filha, irmã, esposa, diretora de relações públicas e empreendedora. Poderia começar este texto dizendo que quero fugir do clichê das narrativas tristes sobre ser uma cidadã negra no mundo, mas como, se viver me adoece?

São 11 anos de carreira, nascida e criada na Cohab do Parque Ipê, zona sul de São Paulo, e hoje residente em Santo Amaro (SP). Atuo como profissional de comunicação e empreendedorismo. “Cresceu na vida, Mayara!”, ouço com tanta frequência, e esse sempre foi o meu sonho: crescer e proporcionar possibilidades para quem está ao meu redor. Hoje, trabalho com impacto social, falo com os meus e sobre os meus. É muito da hora! O meu trabalho e a minha família são os pilares e momentos mais importantes da minha vida. Uma paz divina.

Porém, crescer não significa viver leve. “Se o que eu sou é também o que eu escolhi ser, aceito a condição”, como canta Emicida em AmarElo. Mas aceitar não significa não sofrer. O crescimento deveria ser um alívio, uma vitória, aquele respiro que diz “eu venci”, entretanto, aprendi que até para crescer há um preço, que vai além do esforço dos estudos ou das abdicações. A paz de nós, pessoas pretas e periféricas em ascensão, vem carregada da violência que tentam nos impor e da solidão que nos cerca.

“A carne mais barata do mercado é a carne negra”, como já cantou Elza Soares. E mesmo subindo na vida, o racismo é o peso constante nas nossas costas. Já disse tantas vezes que o dinheiro resolveria todos os meus problemas e que preferiria chorar em um hotel 5 estrelas do que onde estava… É maluco, mas hoje eu entendo e falo a frase que eu mais odiava: dinheiro não é tudo na vida.

Não sou rica! Apenas cheguei naquele conforto de poder viver em um bairro de fácil acesso ao trabalho, de poder pegar o metrô a poucos metros de casa, de acordar cedo apenas para ir a academia, e não para passar duas horas no transporte público. Conquistei o básico, aquilo que para muitos sempre foi natural. E depois de 11 anos de luta, na primeira semana no meu novo endereço, ouço: “Não entro em elevador de macaco. No Brasil só tem macaco. Macaco fica no elevador de serviço.”

Foi exatamente isso que meu vizinho de porta gritou se referindo a mim. Feliz ano novo, Mayara! Mais um ano em que vejo o retrocesso na pauta da diversidade e da inclusão, com anúncios de grandes empresas ignorando a realidade.

Como eu, uma profissional de comunicação e criatividade, posso criar? “O racismo é uma arma carregada apontada para o coração dos negros”, como disse Angela Davis. Se não me querem viva, por que gostariam de me ver criando e liderando projetos para eles?

Essas perguntas ecoam na minha mente enquanto luto contra o medo de ser ainda mais violentada, enquanto penso em me mudar de casa. Não estou aqui para trazer uma mensagem de esperança ou um desfecho positivo. Apenas neste texto não vou falar de planejamento, ideias, projetos e vontades. Compartilho o quanto nós, profissionais pretos, passamos por batalhas internas que o mercado ignora, quando exigem de nós o mesmo que exigem de quem nunca precisou lutar pela sua existência. Como é o acolhimento da sua empresa? Quais são suas políticas de diversidade? O mundo está nos adoecendo, e algumas fases da vida adoecem ainda mais.

Ver o retrocesso sendo abraçado por quem está em posição de liderança dói. “A mudança é feita com raiva. Ela não é feita com a aceitação silenciosa das ordens dadas”, como escreveu Conceição Evaristo. Agora, mais uma vez, me reconstruo, como sempre fiz. Planto sementes de mudança, acolho e reconheço as dores que me ferem e ferem os meus, e me agarro na fé de que as sementes plantadas hoje vão florescer em um futuro diferente.

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