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Contando as nuvens

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Opinião

Contando as nuvens

Em nossa mente dispersa, pela sobrecarga de informações e pela superestimulação, a atenção focada e profunda é uma raridade


14 de outubro de 2024 - 6h00

O experimento parece bem simples. Uma cumbuca com arroz, outra com lentilhas. Em uma mesa, você despeja o conteúdo de ambas e mistura os grãos, formando uma pilha. É importante despejar apenas aquilo que você estaria disposto a separar e contar, pensando no tempo e na dificuldade da tarefa proposta. Uma vez que você começa a fazer a contagem, é fundamental pensar que é possível separar e contar os grãos de arroz e os de lentilha, e que você tem a força de vontade necessária para finalizar o experimento.

Em 2014, a artista Marina Abramovic pensou e conduziu essa performance em uma galeria de arte em Londres. Diz ela que durante esse processo de contagem, você percorre diferentes estágios emocionais. E aqui vou usar as palavras da artista para explicar esses estágios. A primeira sensação que vem é a de diversão, porque, afinal, é uma atividade nova e você tem um desafio inusitado. Agora, depois de contar por 15 minutos, 30 minutos, uma hora, chega o tédio. E o sentimento que vem a seguir é o de raiva, com aquela fatídica pergunta: por que eu estou fazendo isso? E nesse momento você tem uma decisão a tomar. Não importa como, não importa o tempo, não importa a dificuldade, você será capaz de chegar ao último grão contado? Se você decide que sim, que é capaz de enfrentar essa contagem, você vai sentir paz interior ao descobrir que o aqui e o agora é o que importa. Marina diz que é tudo muito simples na proposta dela. Se você não consegue contar o arroz, você não consegue lidar com a vida.

Menos de um mês atrás, eu fui surfar em um lugar bem distante. Foram 12 dias em um barco com 15 pessoas, no total. Longe de tudo, com uma cultura completamente diferente, praticamente sem pisar em terra. E nessa viagem aconteceu uma coisa para a qual eu não estava exatamente preparado. Sumiu o sinal do celular, por três dias e por completo. A gente podia subir no mastro do barco, que nada acontecia, não surgia uma barrinha sequer. Houve um aviso de que isso aconteceria e que, no caso de alguma emergência, poderíamos usar o telefone por satélite. Ainda assim, foi um baque que me levou a experimentar os tais diferentes estágios emocionais.

A primeira sensação que vem quando você sabe que não terá acesso ao celular por dias é um choque. Como assim? É isso mesmo? Não tem nenhuma manha para burlar o satélite? Na sequência, vem um certo desespero interno, especialmente para quem é ansioso. Você começa a desenhar cenários do que pode acontecer em casa, a essa distância. Você pensa que a sua família quer a notícia de que está tudo bem. Nesse estágio, você checa o celular diversas vezes para saber se não tem sinal mesmo. Em seguida, tem um inesperado apaziguamento, que não é um conformismo – é uma pacificação, como diz o sinônimo da palavra. É uma calma que há muito não sentia. Sem acesso a nada, passei a ter que prestar atenção ao que estava acontecendo naquele momento. Não precisei misturar arroz com lentilha para isso. A minha calma, a paz interior, veio quando eu me vi contando as nuvens. Desde muito cedo, tenho um fascínio completo pelo céu. O que, acredito, tenha tornado a minha chegada a São Paulo um pouco mais dolorosa. Eu sou o clichê dos clichês na relação com o céu. Eu gosto do pôr do sol e adoro o nascer do sol, faço fotos instagramáveis desses momentos. Ainda guardo comigo aquela criança que olha para as nuvens em busca do que elas parecem. E, nesse momento de paz, passei um longo tempo – que não sei estimar ao certo – apenas contando as nuvens daquele fim de tarde. Foi uma experiência que eu poderia descrever como próxima de uma meditação e que afetou os dias que vieram na sequência. Li diversos livros, surfei pensando apenas em cada uma das ondas, foquei em entender os temperos que estavam em um prato delicioso chamado soto ayam (uma espécie de lámen indonésio), aproveitei as conversas sem a distração da tela. Eu estava no aqui e agora, um lugar muito distante nos dias de hoje.

O professor e pesquisador David Ley cunhou o conceito de “cérebro de pipoca” que fala da relação entre essa hiperconectividade e a falta de concentração. Trata-se de um cérebro tão imerso na sobrecarga de informações e na superestimulação, que passa a replicar esse comportamento na busca da dopamina como recompensa. E nessa mente dispersa, os pensamentos pulam como a pipoca do conceito. É uma fragmentação silenciosa a que estamos constantemente expostos e não parece que exista uma busca de solução de equilíbrio. Pelo contrário. A atenção focada e profunda é uma raridade.

O experimento proposto por Marina Abramovic e o “cérebro de pipoca” estão conectados intimamente, mas não precisamos contar arrozes para entender os pensamentos que pulam. Basta pegar um livro e deixar o celular perto. Quantas páginas você é capaz de ler sem pegar o celular? Aquele filme que você deixou para ver no streaming. Você consegue ver o filme inteiro numa tacada só? Sinceridade.

Muito provavelmente eu não tenho a concentração necessária para fazer a conta dos grãos e todas as suas divisões, se me fosse proposta a tarefa. Porque o contexto e o lugar são partes importantes para a desconexão. No começo do ano, conheci um argentino que tem como principal hobby desbravar trilhas inéditas ao redor de Mendoza e na Patagônia. Ele sempre faz todas as aventuras sozinho ou com um cão. Lembro de ter perguntado: mas você fica sem conexão por quanto tempo? E ele me respondeu: já aconteceu de ficar sete dias. Continuei com a indagação: e como é? Ele, com toda a sabedoria: você não tem ideia da paz que eu sinto! Eu não tinha ideia. Mas agora tenho uma lembrança desses três dias em que passei contando as nuvens.

P.S.: Para o meu amigo Fábio Cerdeira e todos que estavam naquele barco longínquo.

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