Dados nunca foram tão humanos
Uma pequena série sobre isolamento, tecnologia, entretenimento e arte
Uma pequena série sobre isolamento, tecnologia, entretenimento e arte
Trabalhamos o tempo todo com dados. Dos simples aos complexos, todos nós somos mais ou menos direcionados por informações com as quais temos contato cotidianamente. Desde o nosso peso até a previsão do tempo, o que fazemos é tomar decisões a partir de dados. Nas últimas semanas, porém, temos visto uma enxurrada de tipos de informação de naturezas variadas.
O mundo inteiro está tentando se planejar a partir do entendimento de modelos estatísticos sobre os próximos movimentos de um vírus que até novembro passado era desconhecido. É pouquíssimo tempo para tentar estabelecer um padrão matemático de comportamento entre todos os estágios da doença.
Um ponto importante a se colocar aqui é como fica evidente a criticidade de qualidade nos dados coletados para maior precisão na tomada de decisão. Qualidade por vezes difícil de se conseguir em momentos como esse, mas frequentemente negligenciada em outros processos na busca de insights e aprendizados.
Começam a aparecer de forma corriqueira, cotidiana, conversas sobre “achatar a curva” com o isolamento social. Controlar o contágio olhando para gráficos. Todos parecem entender como funciona, apesar de infelizmente alguns se recusarem a aceitar esse fato.
Nunca estivemos tão expostos ao significado de “exponencial”. Conceito de uso frequente (até demais) por quem passou perto de iniciativas e jargões relacionados ao universo empreendedor das startups do Vale do Silício. Só que agora ele é mostrado, de forma profundamente perturbadora, quando o cálculo é usado para estimar crescimento de casos de contágio, hospitalizações e, consequentemente, mortes.
Da mesma forma que parte da população, duplamente exposta aos efeitos dessa crise, do ponto de vista da saúde e do ponto de vista social, vira número, vira estatística, vira célula de Excel, como consequência de um pensar econômico tacanho, limitado, frio. Essa população perde a identidade. Seus membros passam a ser categorizados em massa, tipo, situação legal, status em suas relações institucionais com o lugar onde vivem. O que essa pandemia fez foi abrir uma infinidade de novas tensões e evidenciar outra infinidade dessas tensões, muitas delas que estavam soterradas, escondidas, ou, o que é pior, ignoradas.
Parte dessa miopia sobre dados se manifesta também nas relações trabalhistas mais imediatas. Grupos de empresas passaram automaticamente a olhar sua força produtiva através das lentes matemático-financeiras. Números de desempregados, números de contratos a serem negociados, valores de indenizações. Matemática que, por sua vez, falha ao considerar lucros líquidos históricos como forma de equilibrar essa balança.
Por dados se sabe onde as pessoas estão, por onde passaram e quantas estão quietas em casa, de quarentena. Mas ainda são números, porcentagens. Pelo menos, nesse caso, justificadamente para proteger uma privacidade relativa. Dados econômicos, dados sociais, dados empresariais, dados financeiros, dados, dados, dados.
É preciso refletir sobre quão perigosa é a normalização dessa associação mórbida que temos visto em todos os relatórios diários sobre a crise. Não podemos esquecer que não são apenas números de desempregados, desassistidos, infectados e mortos.
São pessoas, que têm famílias, que viveram histórias. Não podemos esquecer isso nunca.
Dados nunca foram tão humanos. Dados me lembram (Stéphane) Mallarmé: “Um lance de dados nunca abolirá o acaso.”
*Crédito da foto no topo: Ivanastar/ iStock
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