23 de junho de 2020 - 10h12
(Crédito: @tavaro)
A frase que dá título a este artigo é um trecho do romance Ensaio sobre a Cegueira do aclamado escritor português José Saramago. No livro, Saramago retrata a história de uma sociedade acometida por uma cegueira repentina e incontrolável. Uma “treva branca”, como nomeia o autor, cega praticamente toda a cidade, e diante desta cegueira o homem assume sua pior face.
Quando uma treva encobre seus atos e ninguém vê o que você faz, as regras perdem o valor e a violência se torna a lei imposta pelo mais forte. Este foi um dos sentidos que me vieram à cabeça quando li o romance e o que norteia meus pensamentos quando tento compreender o que teria acontecido com a sociedade brasileira quando o assunto é a discriminação racial.
Uma cegueira deve ter afetado grande parte da população que não consegue enxergar como um crime motivado por raça o fato de um pai de família ser assassinado pelo exército com 80 tiros num domingo ensolarado. Penso que somente a treva branca poderia ter acometido uma mulher que não titubeou ao deixar o filho negro de cinco anos da empregada sozinho dentro de um elevador e apertar o botão do nono andar.
Com esta cegueira coletiva, a branquititude brasileira (entenda como um termo que confere à pessoa branca privilégios, inclusive o de racializar o outro e nunca a si mesmo) criou espaços de privilégio onde negros não são convidados a participar e utilizou os meios e veículos de comunicação como instrumentos capazes de naturalizar e silenciar a discriminação no País.
Mas de quem será a responsabilidade de ter olhos quando os outros o perderam? É difícil outra solução que não entregue à elite branca brasileira a responsabilidade de sair deste lugar confortável da cegueira coletiva, tirar as vendas que o privilégio gentilmente os concedeu e assumir um papel modificador diante do racismo estrutural e perverso instaurado.
A cor é sim um impeditivo no Brasil e “de repente a realidade tornou-se indiferenciada à sua volta”. Já não cabem mais as mesmas desculpas incongruentes de que não contratamos negros por não encontrarmos profissionais qualificados. Cada vez mais as empresas precisam tomar para si a responsabilidade de promover a mudança e aportar investimentos no desenvolvimento desta população. Baixar as exigências na contratação de profissionais, ter a questão racial como um dos princípios norteadores de suas ações.
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Podemos entender Saramago tentando desvendar a cegueira do homem em relação a ele mesmo. Ao contrário do que a sociedade não negra brasileira entende, o racismo não é um problema dos negros. Entender-se parte do processo de colonizador é passo importante para iniciar a retirada da venda que o cega. Um momento seguinte é responder a uma questão levantada pelo intelectual James Baldwin em 1963 e procurar em seu coração o porquê foi necessário criar um negro. Porque eu não sou um negro, eu sou um ser humano.
Toni Morrison traz em seus estudos que raça não é nada além de imaginação genética, parâmetro de diferenciação criado para justificar que negros são seres humanos inferiores. Existe um conforto em criar um outro inferior e este conforto está no fato de você conseguir se definir melhor do que ele.
No romance de Saramago, quando a cegueira se torna uma epidemia, os problemas ficam ainda mais expostos e a desigualdade aumenta. “Por que cegamos, não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te diga o que penso, diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que veem, cegos que vendo, não veem”.
Ainda estamos em tempo para abrir os olhos e ver. Abrir os olhos em tempo de enxergar o horror e providenciar a mudança antes que chegue o dia em que desejaremos ser cegos diante do que nos tornamos como sociedade.
*Crédito da foto no topo: Tookapic/Pexels