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Opinião

Deixe a criança entrar

Rezo segundo a cartilha do Eduardo Galeano, que não era um “otimista integral”, mas guardo em mim o velho e a criança em convivência harmônica


22 de abril de 2025 - 6h00

“Mas não quero ser um otimista profissional, porque sou otimista de acordo com a hora do dia; às vezes, sou muito pessimista. E a esperança é uma coisa que, por vezes, me cai do bolso, e tenho que buscá-la, descobrir onde ela está, recolher alguns pedacinhos, muitas vezes. Não sou um otimista integral e, além disso, não acredito em quem é.” — Eduardo Galeano.

Posto isso, não espere grandes lufadas de otimismo das minhas palavras, tampouco um tsunami de pessimismo. Rezo seguindo a cartilha do Eduardo Galeano e, algumas vezes, tal qual ele disse em uma entrevista, acordo otimista e assim me mantenho das oito às dez da manhã; e fico pessimista das dez até o meio-dia. Só vou recuperar o otimismo às duas da tarde. É raro, mas acontece.

Talvez você já tenha se deparado com a historinha que envolve um diálogo entre Clint Eastwood e Toby Keith, cantor de country music, em um campo de golfe.

Entre uma tacada e outra, o cantor perguntou a Clint o que ele faria no dia seguinte. E Clint respondeu: “Tenho uma filmagem às cinco e meia da manhã.” Intrigado, Toby indagou como ele tinha tanta energia aos 88 anos. E Clint cravou: “É simples. Eu acordo, saio e não deixo o velho entrar.”

Depois da conversa, Toby acabou compondo a canção “Don’t Let the Old Man In”, que virou um sucesso.

Conheci esse “causo” por meio do meu amigo incansável Dulcidio Caldeira. Eu tinha acabado de fazer 50 anos, e o senhor Dulcidio — que é a forma empostada pela qual eu o chamo — leu um texto em que eu dizia ter chegado à idade em que a estrada já não dobra mais de tamanho à frente. E ele, com uma contida indignação, me mandou a história do Clint e reforçou com tintas “obsessídias caldeiras”: não deixe o velho entrar. Nunca mais esqueci. Nem isso, nem o fato de que o Dulcidio enxerga o mundo com a curiosidade de uma criança.

Não faço autorreferência da idade como um lugar ruim. Aliás, evito aquelas piadas autodepreciativas do tipo “Sabe como é, né?, velho sente dor na lombar”, “A idade chegou e preciso de tempo para entender” e coisas do gênero, para ganhar umas migalhas de risadas compensatórias. Evito porque acredito que isso acaba por se tornar um pensamento de reforço, mas também porque guardo com carinho a expressão “meu velho”, que pode ser sobre uma grande amizade ou sobre o meu pai, que não teve a chance de ver as netas. “Meu velho” é expressão de afeto. Sendo assim, guardo o velho, sempre que me recordo, para o jeito poético do olhar. Recordo que aqui, onde o sincretismo ainda permeia com belezas as ruas, o “preto velho” resiste como um lugar dessas vivências, da sabedoria ancestral, do aconselhamento.

Contudo, entretanto, todavia é importante frisar que não acredito numa velhice que caminhe sempre ao lado do ganho de sabedoria. Pessoas perversas, em sua gigantesca maioria, continuam perversas na terceira idade. Porque a sapiência do passar dos anos requer desprendimento das certezas, autoavaliação constante, admitir erros, tentar corrigi-los enquanto há tempo e uma verdadeira vontade de aprender com os outros. Envelhecer sabiamente não é uma regra escrita em papiro.

“Não deixe o velho entrar”, dizem as portas de algumas salas de reunião. Dizem os comentários anônimos em seus mísseis teleguiados. Em um mercado que flerta eternamente com a ideia da fonte de juventude, o velho não entra. Para efeito de comparação: você entra no consultório de cardiologia e encontra uma médica acima dos 60 anos. Quase certo de que você se sentirá mais tranquilo. Independentemente de as tecnologias terem avançado na medicina, de existirem os mais diversos robôs numa sala de cirurgia. Na terapia, a mesma coisa: um terapeuta mais velho evoca conhecimento, não? No campo da advocacia, o mesmo padrão pode ser repetido. Agora, pense numa sala de reunião para discutir o futuro de uma marca. Pense se entra alguém acima dos 60 anos. Pense sinceramente no efeito.

Não deixe o velho entrar, penso na preguiça matinal que antecede a ida à academia, na hora de marcar os exames de rotina. Porém, um mantra mais constante tem sido o “deixe a criança entrar”. Foi uma maneira de olhar para a história do Clint buscando um novo significado. Deixe a criança entrar e ria do ridículo que é fazer a posição do “gato olhando para o rabo” como alongamento. É importante, mas é tragicômico. Deixe a criança entrar na hora de abordar as ideias no papel, no computador, ou seja, lá qual for o lugar que você as anota. Escreva o absurdo, o devaneio, o proibido. Depois, deixe que o adulto entre na sala e faça a seleção. Deixe a criança entrar nos sonhos acordados. Porque ela certamente já se faz presente em alguns sonhos dormidos. Ou você nunca sonhou que esqueceu de estudar para uma prova da oitava série, acordando aliviado na sequência?

Deixe a criança entrar para bagunçar a casa, quebrar as regras, saborear um bolinho de chuva, quando o velho diz que não é mais tempo para bolinho de chuva. Há mais de dez anos, escrevi sobre a importância da leitura de Calvin e Haroldo na minha formação criativa. Busco a manutenção fiel dessa crença. Ainda acho impossível não estourar uma bolha de sabão quando me deparo com uma no ar. Guardo o velho e a criança em uma convivência harmônica. Torcendo para sempre pressentir qual deles é o ator principal daquele momento. E, assim, uma brisa de otimismo invade o recinto.

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