É hora de dar um basta nas discussões estúpidas da sua timeline
As diferenças entre Mídia, Conteúdo e Jornalismo deveriam ser óbvias, mas não são
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BuscarAs diferenças entre Mídia, Conteúdo e Jornalismo deveriam ser óbvias, mas não são
19 de setembro de 2016 - 10h27
“Não temos como provar, mas temos convicção”, já entrou para a História como a frase não dita mais viralizada desde os primórdios da Internet brasileira. Foi o hit da semana. Quase tão popular como a “notícia” sobre a jornada de trabalho dos brasileiros, que claramente aumentou para 12 horas diárias, como você leu no seu jornal favorito. #sqn.
Ou talvez você prefira o “causo” do labrador da ex-presidente Dilma que, em questão de horas, segundo o que foi veiculado por aí, foi abandonado, esquecido, maltratado, doado e assassinado. Mas, no fim das contas, ele só foi sacrificado mesmo porque estava nas últimas (tadinho).
Mas a verdade meeeesmo é que você não sabe se esses episódios geraram mais confusão do que o currículo da Bel Pesce. Ou se eles são mais importantes do que saber se a Cris Duclos saiu ou não saiu escoltada da Vivo, como publicou um “site jornalístico”. Ou se o texto do Gregório é uma peça de amor – ou de promoção publicitária.
Basta uma semaninha nas redes sociais para você ler um pouco de tudo e formar sua opinião. Mas você já parou para pensar se as informações que você lê dos seus amigos – e curte, comenta, compartilha – são realmente verídicas?
Em mais de 20 anos de carreira eu nunca vi um debate decente sobre a diferença entre Mídia, Conteúdo e Jornalismo. Tudo bem, em tese essa discussão nem deveria rolar, porque resultaria num dos debates mais sem sentido do mundo. Mas chegamos num ponto em que essa conversa precisa acontecer. Começar e terminar rápido. Simplesmente porque a falta dela está provocando consequências estúpidas para a sociedade. Como, por exemplo, você brigar com alguém por conta de uma notícia falsa. Se tornar intolerante com uma pessoa próxima só porque ela discordou de você após ler um artigo de opinião. Ou sair por aí desfazendo amizades porque se tornou radical em suas posições políticas por conta de um… boato.
Fato: com o surgimento da Internet comercial, em 1994, três coisas que antes eram muito parecidas – Mídia, Conteúdo e Jornalismo – passaram a ser coisas totalmente diferentes.
Deveria ser óbvio, mas não é.
Dê um Google e você vai encontrar às pencas frases como “Os vídeos estão matando a televisão”, “A Internet está matando o Jornalismo” ou “O Google está matando as reportagens das revistas”. Muita gente vai acha-las normais. Mas elas não fazem o menor sentido.
Os vídeos não estão matando a televisão, porque vídeos são um formato de Conteúdo (assim como textos e fotos) e a televisão é uma Mídia (ou seja, um canal de distribuição de conteúdo). Pode parecer chocante, mas vídeos podem (!) ser transmitidos pela televisão (!!). Portanto, a frase que soa profética não passa de bullshit. Ah, mas por “vídeos” a pessoa quis dizer “Internet” – ou seja, “a Internet está matando a televisão”. Entendi! Mas… a maioria das TVs hoje não estão conectadas à Internet, o que by the way é um dos fatores essenciais para essa mídia permanecer a rainha dos lares?
(Pausa para reflexão.)
Da mesma forma, dizer que “A Internet está matando o Jornalismo” não faz o menor sentido. Internet é uma mídia. Jornalismo é um conjunto de práticas muito peculiares de produção de Conteúdo, em diversos formatos. Inclusive em formatos nativos de… Internet. Quando você lê uma matéria no site da Economist, você está lendo uma matéria jornalística. E não, ela não precisa necessariamente ter sido produzida pela “revista The Economist”. Porque revista também é uma mídia, e as pessoas que produziram a matéria – jornalistas – geralmente não se importam em qual mídia essa matéria vai sair, desde que ela seja veiculada. Se é na Internet, na revista, no jornal, no ar ou na água, o que importa é que o veículo/mídia tenha alcance e torne a matéria o mais conhecida possível.
E por falar em revista, não faz a menor lógica pensar que elas estão sendo “mortas” pelo Google. O Google é uma plataforma de distribuição/mídia. Ou seja, ele não produz Conteúdo, mas só veicula conteúdos de terceiros. Jornalísticos ou não. Relevantes ou não. Com credibilidade ou não.
(Pausa para respirar.)
Se você conseguia ler e escrever antes de 1994, vai se lembrar que, até aquele ano, as coisas eram muito mais simples do que são hoje. Naquela época, grosso modo, as pessoas só sabiam das coisas por meio de veículos de informação: marcas de jornais, revistas, canais de rádio ou de televisão. Essas marcas, portanto, eram intermediárias entre as pessoas e seu acesso às informações. Por conta disso, ganharam um poder enorme, pois ser intermediário não significa necessariamente “dar o acesso”: pode significar “filtrar o acesso”. Como não havia outra forma de saber das coisas, os veículos (cada um em sua mídia) se tornaram empresas bem-sucedidas em controlar o acesso à informação das pessoas.
Aí surgiu a Internet e implodiu as coisas, promovendo a desintermediação do acesso à informação. Hoje você encontra de tudo, sem filtro algum, quando está online. De uma maneira muito mais rápida que antes. E com maior alcance também, dada a penetração global da Internet. Ainda que novos intermediários tenham surgido (como as plataformas de distribuição e as redes sociais), as pessoas não precisam mais dos “filtros” como antes. Elas podem acessar tudo livremente.
Goste-se ou não, o fato é que essa quebra no modelo de consumo de informação causou uma revolução (e uma grande confusão).
Eis a diferença: antes da Internet, os intermediários (veículos de comunicação), cada um à sua maneira e em gradações diferentes, investiam num tipo de conteúdo baseado em Jornalismo, construindo credibilidade para tornar as informações confiáveis para as pessoas. Ou seja, os veículos (Mídia) passaram a distribuir informações (Conteúdo) com credibilidade (Jornalismo). Centralizavam os três elementos. E a publicidade os sustentava.
Hoje, todo mundo pode produzir diversos tipos de formatos de Conteúdo (escrever, gravar um vídeo etc.) e publicá-los em plataformas de distribuição (os novos intermediários) que atingem milhões de pessoas. Só que, na imensa maioria dos casos, o material veiculado não é Jornalismo. Simplesmente porque não foi produzido de acordo com regras jornalísticas – como apuração de múltiplas fontes, checagem da veracidade dos fatos, análise de contexto, investigação dos interesses por trás das notícias etc.
Nada contra o Conteúdo que não é jornalístico. Nem contra as plataformas de distribuição ou mídias, que podem e devem veicular o que quiserem. Mas, de uma vez por todas, é preciso entender que essas três coisas NÃO são iguais e NÃO estão mais centralizadas como antes. Em outras palavras, as pessoas deveriam entender o que é Mídia, o que é Conteúdo e o que é Jornalismo. E, aparentemente, elas não estão conseguindo.
Uma das razões para isso, penso eu, é que os veículos de comunicação tradicionais (aqueles que ainda pensam como antes de 1994), deixaram de investir em Jornalismo. O fato é que a quebra do modelo de consumo de informação mudou o negócio da publicidade e, até hoje, não trouxe um modelo matador/game changer à tona. Mas a questão é: será que a indústria precisa de um modelo matador/game changer? Porque há vários modelos alternativos (Vice, BuzzFeed, NYT, Washington Post, Politico, Quartz etc.) que já se provaram bem-sucedidos. Sim, eles podem não ser tão grandiosos como eram os do passado, ou mesmo suficientes para construir novos impérios de mídia. Mas quem precisa de novos media moguls?
Toda essa discussão para chegar ao ponto crucial do meu raciocínio: nós, como sociedade, precisamos mais do que nunca de Jornalismo de qualidade. Quanto maior a quantidade de informações que trafega, mais nós precisamos de filtros de qualidade. O fato de as pessoas comuns terem acesso indiscriminado a informações e a possibilidade de publicar o que quiserem é algo libertador, mas isso não dá a elas, de uma hora para a outra, o poder ou a credibilidade para distribuir uma informação que seja verdadeira sem checa-la ou confirma-la.
Jornalistas não são perfeitos e são passíveis de cometer erros terríveis, capazes de elevar ou destruir reputações numa canetada. Mesmo assim, o Jornalismo ainda é o instrumento mais confiável que existe para construir uma sociedade bem informada.
Pense nisso antes de brigar com seu amigo por conta de uma “notícia” que você viu na timeline dele. De promover uma “Unfollow Friday” só porque não gosta mais do conteúdo que sua comunidade compartilha. Ou de compartilhar indiscriminadamente algo que você leu sem antes checar. Se não, daqui a pouco todos nós vamos achar que a Bela Gil comeu a placenta do filho com vitamina de maçã, em vez de banana.
(Aliás, se a Bela fez isso mesmo, ela deixou de ser vegetariana?)
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