É tudo Pablo-mático
Sobre separar o artista da sua obra, a maioria acredita que sim, que é necessário para que se possa aprender
Sobre separar o artista da sua obra, a maioria acredita que sim, que é necessário para que se possa aprender
Se você tem Netflix e assistiu Nanette, um especial escrito e apresentado pela comediante australiana Hannah Gadsby, talvez lembre da parte que ela faz uma análise (a la Hannah Gadsby) sobre história da arte e, mais especificamente, sobre a vida e obra de Pablo Picasso. Se você não lembra ou não viu, aqui vai um resumo: No especial, Hannah nos provoca a olhar para Picasso além da sua tão conhecida genialidade, através de um outro aspecto da sua vida: o seu lado misógino. Ele consistentemente objetificou mulheres em sua arte, muitas vezes reduzindo-as a meras musas ou sujeitos passivos. Ela fala sobre como essa objetificação reflete um comportamento mais amplo na história da arte, em que os corpos das mulheres foram submetidos ao olhar masculino e explorados para o consumo de espectadores masculinos. A análise de Gadsby nos obriga a examinar criticamente a dinâmica de poder inerente à criação e recepção da arte, onde as mulheres são frequentemente retratadas como objetos passivos ao invés de criadoras ou participantes ativas.
Quando esse especial foi lançado, em 2018, gerou uma grande reação do público, trazendo à tona uma tão debatida questão: devemos separar o autor de sua obra? O quanto do trabalho e reputação de Picasso e tantos outros foram protegidos de maiores críticas devido a predominância de vozes masculinas na história da arte?
E ela nos provoca a pensar além: como seria a história da arte se nela fossem representadas as visões das mulheres tanto quanto foram representadas as visões dos homens? Como uma representação justa, na arte, das visões de toda a humanidade — não apenas dos homens brancos — mudaria nossas ideias sobre quem somos e nosso potencial como indivíduo e sociedade?
O domínio de figuras de poder masculino, não apenas no mundo da arte, mas também em várias áreas, perpetua uma compreensão estreita da cultura e as desigualdades de gênero. Essa mesma questão existe na literatura, música, comédia, medicina e, claro, propaganda. Ao permitir que Picasso e outros artistas do sexo masculino definam e moldem as narrativas culturais, Gadsby argumenta que corremos o risco de perpetuar uma compreensão limitada e tendenciosa da arte e do mundo. Uma visão limitada que nos limita.
Por que eu estou falando disso nesse artigo? Esse assunto voltou para a minha cabeça quando fui ver uma exposição que ela criou junto ao Brooklyn Museum chamada “É tudo Pablo-mático” (It’s all Pablo-matic), e saí de lá reflexiva, acima de tudo, sobre a importância de desenvolvermos constantemente um olhar crítico sobre nossas referências e ídolos.
Na entrada da exibição, ela já deixa algo bem claro: “Acho que é inútil entrar diretamente em uma conversa sobre se devemos “cancelar Picasso”. Até porque é impossível. Ele já aconteceu. Além disso, Picasso não se importa. Ele está morto. Ele não vai aprender nada. Isso não é sobre ele. Estou brincando. Isso é. Mas na real, não é.
Ao longo da exibição. ela nos conduz por mais de cem obras, incluindo peças de Picasso e seleções de mulheres artistas dos séculos XX e XXI, como Cecily Brown, Renee Cox, Käthe Kollwitz, Dindga McCannon, Ana Mendieta, Marilyn Minter, Joan Semmel, Kiki Smith, May Stevens, Guerrilla Girls e Mickalene Thomas.
Uma das coisas mais interessantes é que na descrição (e audio guide) de muitas das obras dessas mulheres, conhecemos a perspetiva delas sobre Picasso. E foram essas perspectivas que enriqueceram a minha experiência, que me provocaram a olhar para a questão central da narrativa da Hannah por diversos ângulos. Hannah não criou uma exposição para nos fazer pensar com ela. Claro, ela nos conduz com suas falas cheias de humor, ironia e referências, mas há um espaço para navegar outras perspectivas, enquanto conhecemos e reconhecemos muitas artistas.
Para a historiadora, crítica e curadora Linda Nochlin (1931-2017), a questão não era sobre ele ser parte de uma cultura machista, mas, sim, a falta de sensibilidade e atenção ao fato de que a relação homem-mulher e, acima de tudo, a relação dele com a mulher dele, possa ser algo além do papel de suprir as necessidades e os desejos dos homens. Já para Laurie Simmons, artista americana, o fato de Picasso aparecer muito na TV e ser motivo de piadas fez seu apreço por ele ser prejudicado, e o descartou por muito tempo por ser muito populista e comercial.
Renee Cox, artista jamaicana, foi a perspectiva que mais me chamou atenção. Ela disse que respeita Picasso porque ele sempre fez o que queria fazer, mas aponta como obsceno o empréstimo que ele fez de perspectivas africanas. Sua base do cubismo foi amplamente baseada na escultura africana, que lhe forneceu uma perspectiva totalmente nova de ver, pela qual ele nunca creditou os artistas originais. Um verdadeiro colonizador.
Sobre separar o artista da sua obra, a maioria acredita que sim, que é necessário para que se possa aprender. E essa foi uma perspectiva nova para mim, e bem recebida. Aprender com Picasso é importante, essencial até, mas é também importante aprender com contexto, com senso crítico do que também compõe sua arte, sua visão.
E como é fácil transportar essa lógica para a propaganda, não acha? Veja esse trecho do artigo quando troco “história da arte” por “propaganda”: “E ela nos provoca a pensar além: como seria a propaganda se nela fossem representadas as visões das mulheres tanto quanto foram representadas as visões dos homens? Como uma representação justa, na propaganda, das visões de toda a humanidade — não apenas dos homens brancos — mudaria nossas ideias sobre quem somos e nosso potencial como individuo e sociedade?”
Aos que por décadas definiram as narrativas propaganda, o que era sucesso. Aos que fazem isso hoje. Que a gente siga aprendendo sem perder o senso crítico.
E termino, claro, com Hannah Gadsby: “Nem todo prodígio é um gênio.”
Compartilhe
Veja também