Ela morreu de overdose
Alguns dizem que ela vai fazer falta. Outros nem perceberam
Alguns dizem que ela vai fazer falta. Outros nem perceberam
22 de novembro de 2017 - 12h40
Ela era feliz e sabia disso. Claro, sua vida não era perfeita. Mas ela conseguia mesmo nos percalços tirar o melhor da vida e receber cada segundo de felicidade em troca. Ela não se rendia aos fatos. E, sim, os transformava em belíssimas histórias. Segundo ela, a vida nada mais era do que isso. Ser e contar histórias. Sobre tudo. Sobre si própria. Sobre os outros. Sobre quem existiu e quem nunca. Dizia que em histórias, o mais incrível era que tudo se podia. Menos conversa morna. Para ela, era nos extremos que se construíam as relações. Repetia sempre que as lembranças que ficavam, eram as dos choros ou dos risos, mesmo que contidos, mesmo que apenas sentidos.
E quer saber? Ela sabia que boa parte das suas histórias não tinha a ver com todo mundo. Que tinha certa dispersão naquela sua disposição toda. Mas, mesmo assim, ela as contava aos sete ventos, a plenos pulmões. Ela dizia que as boas histórias, mesmo quando não tinham pronta utilidade, ficavam lá, guardadas num cantinho de nossa memória. E que num dia, quando a gente menos esperasse, elas fariam algum sentido. Segundo ela, quando aquela amnésia circunstancial passasse daria espaço a uma espécie de memória emocional que a deixaria lindamente posicionada no que ela chamava estranhamente de “lá no finalzinho do funil”.
Ela jogava em todas. Circulava numa boa, sem preconceitos. Sem ser refém de neologismos. Sendo educada com os modismos. Se existia um muro, lá ia ela e fazia uma janela. Sua natureza era essa. Adaptativa era ela. Sempre regida mais por bom senso do que regras. Guiada por coerência e não somente pelos guias. Num dia, falava com todo mundo, com seu megafone no último volume. No outro, cochichava no ouvido com sua voz aveludada. Para ela o que mais valia era uma boa ideia. Dizia que as boas ideias estavam por aí, por todos, e só precisavam de esforço e um bom propósito para nascerem.
Diziam que ela dançava com os números. Mas fazia questão de ditar o passo. Ela era dados com ascendente em intuição. Era pragmática. Era sedenta. Era otimista. Ela queria o número por trás do número mesmo que não fosse mais um número. Tinha racionalidade. Mas também humanidade ali. E acho que adoravam isso nela. Ela conseguia errar na mosca numa vez. Chegar perto da trave na outra. Mas quando acertava, acertava tanto, que não tinha para ninguém. Só dava ela para mais de mês.
Engraçado, para alguns ela era apenas tradicional. Para outros, ela era tradicionalmente moderna. Sua tradição era essa. Juntar tudo de mais novo, com tudo de mais antigo. Adorava tecnologia. Colecionava robôs. Mas nunca conseguiu se desfazer de sua coleção de títulos de anúncios inesquecíveis. Segundo ela, a tecnologia adorava usar a gente. Mas sem gente não era nada a não ser uma palavra antiga de dez letras. Como museologia, por exemplo. Tudo que ela não era, era artificial. Sua inteligência era humana. Suas emoções eram humanas. Mas seu respeito pelo novo era humano também.
E assim ela seguia.
Até que, não se sabe como nem quem, subitamente a convenceu. De que tudo aquilo que ela significava só significava uma coisa: ineficiência.
Por que falar com gente diferente de você? Isso é perda de tempo. Para que surpreender? Contar história? As pessoas não têm mais tempo para isso. Por que pensar no longo prazo se o prazo é hoje? Por que ser você mesma se só existe um jeito de ser? Para que juntar as coisas se a moda é separar? Não dá para manter sua Netflix e ainda querer ver novela. Não dá para manter sua timeline e ainda querer levar uma revista para ler na praia. Esquece: ou você fala exatamente o que se espera de você ou vai ficar sozinha nesse Blade Runner lá fora, entende? Pode ir à festa à fantasia que você tanto quer, mas vá vestida de algo reconhecível para não ser barrada na entrada, ok? Fantasia sem razão é dispersão.
Até onde sei, ela entrou em pânico. Recolheu tudo. E rápido. Virou de ponta cabeça suas convicções. Seguiu cegamente as recomendações. Reduziu sua resolução. Apequenou-se. Deu um tempo naquela emoção toda. Música não mais. Arrepio não mais. Conversa jogada fora jamais. Arriscava uma piscada aqui. Interrompia um conteúdo ali. Passou a ser papo reto. Ou melhor, sem papo. Só reto.
O caminho parecia bom. Estranho para ela. Mas bom. Ela interrompeu o roteiro do longa-metragem. Mas trocou por um longo videocase. Ela não tinha mais aquele frio na barriga. Mas trocou pelo frio da certeza absoluta. Ela não fazia mais parte da conversa. Mas conversar para quê?
O tempo foi passando. E ela foi fazendo de sua mudança um caminho sem volta. Porque na volta não se reconheceria mais.
Ela foi esquecendo sua humanidade. Ela foi perdendo a capacidade de surpreender. Ela estava sempre com as mesmas pessoas. Ela falava sempre do mesmo jeito. Sobre o mesmo assunto. Só sobre ela. Ela foi ficando meio interesseira. Ela foi ficando irrelevante. As pessoas não se identificavam mais com ela. As pessoas não se importavam mais com ela. Nos momentos mais legais ela não estava mais. Ela foi perdendo significado. Ela foi caindo no esquecimento. Ela foi invisivelmente adoecendo. Ela foi minguando. Ela foi morrendo.
Ela morreu.
Sua marca morreu de overdose de eficiência.
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