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Opinião

Eu me encontrarei com você lá

Sonhávamos com o amanhã. Um amanhã de liberdade, respeito, justiça e oportunidades iguais. Um amanhã que o hoje muitas vezes parece não estar conseguindo ser


9 de abril de 2019 - 14h45

 

(crédito: Folhapress/Danilo Serpa)

No domingo, 31 de março, cerca de oito mil pessoas se concentraram no Parque Ibirapuera em São Paulo para lembrar os 55 anos do golpe militar. Eu estava lá.

Eu nasci em 1965 em uma pequena cidade no interior de Minas Gerais. Lá, muitos dizem não ter visto a ditadura nem suas prisões, torturas e assassinatos. Eu mesma, em casa e nos colégios onde estudei, um deles um colégio militar, jamais ouvi ser usada a palavra ditadura para definir a situação política do País daqueles tempos. Nos livros em que estudei, aprendi que o País viveu uma revolução. Já havia atingido a maioridade quando descobri que a manipulação da história, a ignorância, a literalização, são parte de crescer em um regime baseado na ausência de liberdade por meio da censura e do controle da informação.

Já vivendo na capital e fazendo faculdade, descobri a verdade — uma busca constante nas escolas de comunicação daquela época, onde os que queriam fazer jornalismo se misturavam aos que queriam escrever livros, dirigir ou produzir filmes e peças teatrais, fotografar, atuar, produzir arte alternativa e buscavam na publicidade um caminho de sustento ou apenas uma forma de ter o curso superior desejado por suas famílias.

Era a primeira metade dos anos 1980 e ainda dividíamos os corredores com olheiros — em sua maioria, jovens estudantes que acreditavam trabalhar contra o comunismo e se infiltravam nos diretórios acadêmicos, salas de aula e festas para encontrar e denunciar colegas e professores que consideravam perigosos segundo os critérios de quem estava no poder.

Com o tempo, a vida me trouxe amigos que haviam sido torturados ou perdido irmãos, companheiros, tios, primos, mães e pais. Vinte mil torturados; 8,3 mil indígenas mortos; 7 mil exilados; 4 mil direitos políticos cassados; 434 mortos e desaparecidos; 19 crianças sequestras. Talvez você tenha crescido sem conhecer esses números ou talvez considere que eles sejam pequenos ou que representem pouco perto do que significou impedir o domínio do mau. Eu sou capaz de compreender. Não ver também é parte de crescer na ditadura assim como não saber e não se lembrar.

Nessa época, fricções raramente se tornavam visíveis. Praticamente inexistiam debates abertos que alcançavam o senso comum, alimentado por poucos canais de comunicação e conteúdos construídos para reforçar a ideia de que tudo corria bem e de que éramos o País do amanhã. Como que respondendo a um comando inconsciente, vivíamos pelo amanhã. Na prática, trabalhávamos para estar em um lugar diferente daquele que ocupávamos naquele momento. Sonhávamos com o amanhã. Um amanhã de liberdade, respeito, justiça e oportunidades iguais. Um amanhã que o hoje muitas vezes parece não estar conseguindo ser.

Na faculdade, fui para a rua pela democracia várias vezes antes do início do Movimento Diretas-já. Não vivi as ruas do Brasil dos anos 1960 em nenhuma de suas perspectivas, mas nos anos 1980 me encontrei com seu legado, com seus resíduos e com músicas de protesto. Dezenas de vezes enquanto pedíamos por respeito e pelo direito de ser livres cantávamos. Na música dávamos os braços, caminhávamos juntos, nos tornávamos iguais, nos tornávamos poetas, sonhávamos coisas boas e aprendíamos a esperar. Cantávamos pelo amanhã.

No 31 de março, oito mil pessoas reunidas no Parque Ibirapuera cantaram novamente. Eu também. Desta vez, para lembrar que o hoje é o amanhã pelo qual vivemos ontem e que nada é capaz de mudar isso. Em um momento em que diferentes fricções se tornam visíveis a cada segundo alimentadas por centenas de debates abertos que alcançam o senso comum impulsionadas por milhões de canais e de milhares de conteúdos construídos para reforçar a ideia de que tudo vai mal, eu termino citando o poeta sufi Rumi: para além das ideias de certo e errado, existe um campo. Eu me encontrarei com você lá.

*Crédito da foto no topo: Reprodução 

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